O que é que este dia me reserva?
No concreto e imediato, um tratamento de dentes que me vai custar horrores em euros.
É bom que me tenham reservado doses industriais de anestesia. Posso até ficar com dormência bucal prolongada, boca de lado, baba em cascata e sorriso doente, só não quero sentir um calafrio ou arrepio de dor.
Aliás, não sei o que custa mais, se o dinheiro gasto para tirar um dente, restaurá-lo ou desvitalizá-lo, se a boca escancarada em súplica, os maxilares em esforço, a língua para baixo e em pânico ou o excesso de saliva, que o aspirador desespera para conter.
Pensando bem, a libertação de dinheiro para algo que pode ser provisório e não vir a durar é ruinosa.
Para mim, os dentes doentes refletem o estado da nossa vida.
O pior disto tudo é que a perda de dentes não traz outros de volta para repor as falhas. É um traumatismo exposto que te deixa vulnerável e, no pior dos cenários, desfigurada e distante da imagem perfeita e ideal.
Nascemos para ser bonitos e perfeitos. Este é o padrão.
Os dentes têm que ocupar todo os espaços, ser brancos como a cal, estar alinhados, limpos e imaculados.
A ser verdade que os dentes são o espelho da nossa vida, então, falhei cabalmente.
Poucos são aqueles que não têm chumbo.
Meus dentes nunca colaboraram para esse padrão e foram se fixando, conquistando o seu próprio espaço, porém distantes entre si. Algo que ajudou a identificar-me e a ganhar o rótulo popular e comum de mentirosa.
Com o patrocínio dos meus pais, coloquei uma mordaça metálica nos dentes para os forçar a não guardar distâncias e alinhar com os modelos de beleza universal e assim recuperar a vaidade em mim.
Na época, confesso, ter sido preponderante para a elevação da minha auto estima.
Hoje em dia, para meu descarado perplexo, as modelos com diastema são capa das revistas de moda com maior relevo internacional. Essa particularidade estética é vista como carismática, sedutora, charmosa e assume-se na rebeldia da diferença. Uma imagem de marca poderosa, que dantes era vista como imperfeita e inestética.
Apesar de ter vindo com alguns anos de atraso, para tristeza da jovem que um dia fui, veio abalar os estereótipos de beleza escarnados.
A imperfeição passou a ser apreciada e aproveitada pelas marcas através de anúncios que exaltam sentimentos de empatia para com todos aqueles e aquelas que não cumprem os padrões de beleza "normais" e são vítimas de olhares, comentários e segregação.
Diastemas, heterocromia, vitiligo, estrias, entre outras imperfeições, outrora, vistas como anormalidades, nos dias de hoje, são realçadas e evidenciam a natureza feminina na sua plenitude e autenticidade, alegre e triunfante, que não esconde a invulgaridade e exotismo da sua beleza.