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terça-feira, 3 de maio de 2011

Luto



Lídia estremeceu com o arrepio que lhe percorreu a espinha, anunciando a chegada de algo nada auspicioso. Apesar da sensação não ter sido agradável, não se mostrou intrigada nem enfatizou o que acabara de sentir. Sacudiu o corpo e libertou-se daquele mau encosto.
Há quem acredite na capacidade de prever acontecimentos desagradáveis. Basta estarmos atentos à nossa percepção sensorial.
Lídia não se intimidava com arrepios nem explorava o seu lado sensorial e, portanto, tratou de encontrar uma lógica para justificar o sucedido e assim abafar o caso. Para ela tudo tinha uma explicação, que retirava ao mais insólito acontecimento toda a sua atipicidade. Quando recebeu a notícia da morte da sua mãe, não associou aquele arrepio desavindo ao prenúncio de algo doloroso na sua Vida. Não conseguiu viver imediatamente a dor, estava mais preocupada com a  preparação da cerimónia fúnebre, reunir a família, participar o falecimento às pessoas mais próximas, marcar presença e receber as condolências por parte dos convocados, chamar a si todo o cumprimento das tarefas inerentes à despedida final e assim adiar conviver com a perda, tão insuportavelmente incómoda.
À distância, Lídia parecia a menos incomodada com a morte da sua mãe, tendo em conta o seu envolvimento prático e energia aplicadas na organização de todo o acto fúnebre. Na verdade, a ausência de sensibilidade nem sempre é sintoma de indiferença ou desinteresse. Pode muito bem ser uma defesa, para não remexer em sentimentos mal resolvidos, que a perda veio revolver. Lídia amava a Mãe, apesar das diferenças que as separavam. Viveram em épocas diferentes e, por isso, a sua proximidade sempre foi comprometida por esta distância de gerações. A predominância do respeito em detrimento da amizade nunca impediu a existência de compreensão, apoio, colo, carinho e muito amor. O que faltou foram as palavras que o orgulho engoliu mas sobraram gestos, afectos, dedicação, atenção, que compensam esse embargo emocional. 
Todos tiveram oportunidade de se despedir da Mãe menos Lídia. A Mãe merecia que ela estivesse presente naquele último momento mas o tempo não foi seu aliado e  é carregada de culpa que cuida dos detalhes com a funerária.
Não podemos recuar nem  recuperar o que ficou para trás. De pouco adiantam arrependimentos ou massacres emocionais. Eles não vão trazer de volta nossos entes queridos.
Mais tarde ou mais cedo, Lídia terá que enfrentar o luto e lidar com essa dor de uma forma menos angustiante. Ela apenas precisa de encontrar o melhor momento para o fazer. Até lá, vai se convencendo que as rotinas a distrairão da dor.
Não conseguimos abafar o amor que sentimos. Nem mesmo aqueles que recusam expor seus sentimentos, com medo de se fragilizarem ou parecerem ridículos, conseguem resistir-lhe. Acontece que, o Amor também faz doer e excesso de amor faz doer ainda mais, principalmente, quando as ligações são fortes e criam dependência. Lídia sentia Amor pela Mãe, tanto, que nunca chegou a expressar-lhe o quanto a amava. Perdera demasiado tempo a medir forças com a Mãe, somente para que ela reconhecesse que não é o único elemento da família preparado para a Vida nem a única a saber aconselhar ou a ajuizar melhor. Lídia queria que a Mãe aceitasse a sua forma de lidar com as situações e a admirasse por isso. O que ela não sabia é que sempre foi admirada, elogiada e eleita como um exemplo a seguir e a sua Mãe só continuou a manifestar-se, com a sua experiência de Vida, por temer perder-lhe o rasto e deixar de lhe ser mais útil.

sábado, 29 de janeiro de 2011

Morte Adiada

Cinco de Agosto de 2010 é uma data que jamais cairá no esquecimento dos trinta e três mineiros chilenos. Principalmente, para Luis Urzua ou “lucho” para os amigos. Trigésimo terceiro mineiro a abandonar a mina San José por opção. Líder da missão de resgaste desde o interior da mina. Foram sessenta e nove dias a gerir emoções, controlar o pânico, dosear as rações alimentares, acalmar a ansiedade, dividir o oxigênio mas sem abusar, suportar o calor excessivo, acreditar na salvação, abafar a saudade de casa e da família, partilhar o mesmo espaço, conviver com a insuficiência de recursos, lidar com a proximidade e tantas outras privações. Comandar trinta e dois homens, assustados com a probabilidade de morrerem a quase setecentos metros de profundidade, longe da realidade, longe da família, longe do mundo, na escuridão, retidos naquele inferno subterrâneo, não foi tarefa fácil. “Lucho” foi um homem de coragem, ao assumir o comando, ao transmitir confiança aos seus homens, ao criar formas de resistir aquele desespero, sem hora prevista para acabar.
“Lucho” é um homem de fibra, vítima do regime ditatorial de Pinochet, que dizimou sua família e o colocou na posição, deixada vaga pelo seu pai, de chefe de família, responsável pela susbsistência dos seus irmãos.
O que não mata torna-nos mais fortes e foi a força de Lucho que prolongou a permanência e resistência naquele buraco negro, rico em cobre.
O mais curioso desta história bem real é que minutos antes da derrocada, o camião conduzido por um dos companheiros de Lucho, Franklin Lobos, abrandou a velocidade para observar uma borboleta branca, perdida naquele jazigo mineral. A sua presença veio adiar as suas mortes para mais tarde, interrompendo a passagem para o local, onde se deu o desabamento das rochas que bloquearam a saída da mina. Apesar de não ter aspecto de santuário ou de abrigo de fiéis, foi nesses escassos metros quadrados livres de perigo, que o grupo de mineiros invocou os santos das suas devoções para os devolver aos seus entes queridos.
Felizmente, os santos estavam acordados e ouviram os apelos desesperados dos homens soterrados. Uma capsula chamada fênix 2 veio resgatá-los um a um até à superfície, num percurso penosamente lento e doloroso.
Lucho foi o último a oferecer-se para abandonar a mina. Tinha tempo para sair dali. Sentia-se responsável por aqueles homens com quem criou uma enorme cumplicidade e com os quais estabeleceu uma ligação de irmandade inquebrável.
Finalmente, chegara a sua vez de entrar na capsula e subir até junto dos seus companheiros de cativeiro. Na iminência de entrar na “nave”, não conteve o choro compulsivo que durante esses sessenta e nove dias tentou abafar. Já não estava a comandar. Já não precisava fingir que não estava frágil. Era um vencedor. Um dos orgulhos da nação chilena.
O percurso até ao topo foi recheado de pensamentos vários algo difícil de verbalizar, tal era a emoção de estar perto de abraçar sua mulher e filhos. Há dois anos que prometia à sua companheira retirar-se do vício da mina e compensá-la dos anos de ausência, mas a promessa nunca chegou a sair da prateleira. O seu passado de privações fê-lo lutar por um futuro melhor para sua família, mimando-os com todo o conforto e negando-lhes seus afectos, seus abraços,  sua dedicação, seu amor. Mais do que alimento, àgua, descanso, oxigênio, Lucho carecia das reprimendas da Mulher que o intimava a colaborar mais na educação dos filhos, das cócegas desarmantes dos filhos que lhe retiravam o sossego, do concurso de gargalhadas inventado pelo seu filho mais novo, que alastrou a toda a família, das palavras de confiança da Mulher que tantas vezes o animaram, dos beijos roubados aos filhos, dos compromissos religiosos ao domingo, dos domingos e feriados livres para estar com a família sem se comprometer com mais nada, da tequilla, das ensaimadas, dos burritos, dos paparicos culinários da sua Consuelo. Era tão feliz e não sabia. Tinha agora oportunidade de retribuir essa felicidade e a agonia que experimentara na mina, ensinara-o a não desperdiçar momentos de qualidade, pois sabe-se lá por quanto tempo os podemos manter.
As profundezas da mina ajudaram-no a valorizar os sentimentos, a dar-lhes voz, a expressá-los, sem receio de se expôr. O maior medo de Lucho era morrer sem antes reunir-se com a família e dizer-lhes que sempre os amou. Essa iniciativa iria ser posta em prática assim que avistasse Consuelo e sus niños. Mal podia esperar. Agora que estava quase a chegar não podia perder mais tempo. Já perdera tempo demais.

Acordei o mundo

Najla tinha muita dificuldade em dormir. No seu entender, a vida podia acabar se se deixasse adormecer. Uma convicção implantada, desde a m...