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sábado, 9 de julho de 2011

Almas desencantadas



Silêncio total, escassa luz natural, ruídos indecifráveis, respiração acelerada, algum receio mas também, muita curiosidade, em acabar com o mistério daquele lugar perdido na mata, que conta a lenda ter sido palco de um rapto de uma jovem de vinte anos.
Apesar da jovem ter sobrevivido ao trauma, quiz guardar segredo da história que protagonizou, bem como, todos os detalhes do medo que sentiu. Sabe-se que o responsável pelo acto não assumiu sua autoria e, por isso, foi condenado ao remorso que o atirou para o isolamento e, por fim, para a morte tão desejada.
Já passaram tantos anos mas, os mais velhos não esquecem esse passado mau que ensombrou a aldeia de Castrim, até ali refúgio de caminheiros rendidos à sua pacatez.
Samuel foi um dos hospedeiros desta história, carregada de dor, que seu avô não se cansa de lhe relembrar sempre que ele lhe dá essa oportunidade, aproveitando assim para esvaziar todo o seu legado de memórias.
Samuel cresceu a ouvir retalhos deste drama e, aos poucos, interessou-se em recriar esse episódio cheio de densidade dramática.
Os dados eram poucos e difusos, para reconstruir os momentos complicados que Marlene viveu na presença do seu agressor.
Seu espírito inquieto impulsionou-o a mover esforços para remexer na ferida, velada pela vergonha de uma comunidade fechada que, sem saber, gerou um monstro de quem nunca suspeitaram vir a temer.
Iládio, filho único de Gertrudes e Valdemar, enganou-os a todos com seu modo apagado de ser. Seus pais até o convenceram a experimentar a via religiosa. Julgavam eles ser a melhor escolha para ele. Porém, as constantes ausências de Iládio no seminário, arrasaram com as saudades da sua mãe, que acabariam por forçar a sua desistência. Seu pai achou ser um erro mas, aceitou a vontade da Mulher, nada conformada com o afastamento do seu menino de ouro. Iládio tornou-se um homem fechado em si mesmo, de poucas palavras, sem expressividade, baço e algo invisível. Foi através dessa invisibilidade que Iládio aproveitou para criar o seu disfarce, de homem inofensivo e sem maldade.
De longe, expiava Marlene, registando com pormenor cada passo seu, cada gesto seu, todo e qualquer sinal da sua vivacidade. Apesar de se terem cruzado várias vezes e Marlene, o ter ignorado, nunca houve uma tentativa da sua parte de aproximação. Até parece que, provocava aqueles reencontros para conceder a Marlene a oportunidade de se redimir, junto dele, por o ter evitado repetidas vezes. Tal não aconteceu. Marlene continuou a discriminá-lo e a ferir o seu frágil orgulho masculino.
Desprevenida, Marlene nem tentou escapar à sua boleia, naquela vespertina quinta-feira molhada de Setembro. Sem hesitar, acomodou-se a seu lado sem receio das suas atormentadas intenções. Iládio cumpria o seu plano, deixando-a cada vez mais desconfiada e assustada. Quando, finalmente, percebeu o desvio de comportamento e de trajecto também, sentiu-se ameaçada e gritou por ajuda. Ninguém a ouviu, naquele lugar, à mercê do abandono. Arrastada até ao buraco frio, outrora abrigo de ursos selvagens, suplica por um milagre que a resgate de todo o Mal. Caíra em desgraça, ainda a determinar pela vontade daquele homem movido pelo demónio. Que destino teria ele traçado para ela?
Sujeita aos seus caprichos doentios, aguardava ser alvo de todos eles. Estranhamente, nada disso aconteceu. Iládio mostrou-se muito cortês e atencioso, cedendo-lhe o seu casaco de fazenda para a defender do frio da mata. Marlene aceitou o gesto sem se comover e remeteu-se a um silêncio perturbado. Afinal que queria ele?
Sua calma, deixavam-na cada vez mais apreensiva e tentada a provocar-lhe uma resposta, que a ajudasse a desmontar o mistério em torno do seu rapto. Iládio continuava a tentar agradá-la apesar das suas continuadas rejeições. O pior aconteceu quando Marlene invocou o nome da sua querida e intocável Mãe Gertrudes, pensando conseguir demovê-lo daquela loucura. A ousadia enfureceu-o. Marlene teve que pagar a inconveniência com mordaças e amarras apertadas. Sem mobilidade, teve que aturar as metamorfoses de personalidade do seu carrasco. Ora atencioso, ora irado.
Tentou acariciá-la na face, desculpando seu temperamento intempestivo mas, Marlene sacudiu a cabeça sem reconhecimento. Iládio descontrolou-se e, sem piedade, desferiu-lhe um duro golpe na nuca que a deixou inconsciente. Ele só queria que Marlene o amasse. Pensava ele, ser capaz de ganhar o amor daquela Mulher. Julgava-a, nos mesmos moldes da sua mãe. Temente a ele e à sua dedicação.
Sem vocação para despistar psicopatas, Marlene alimentou a frieza de Iládio.
Vendo-a desmaiada sobre o manto dourado de folhas secas, declara-lhe o seu Amor. Tirando o enredo, o cenário até que era dos mais românticos. Lá nisso Iládio teve olho. Só não tinha noção dos seus actos impulsivos, marcados por uma infância protegida e sem contrariações. Aproveitando, a dormência de Marlene, corre para a estrada, onde largou o seu transporte e apressa-se a comprar mantimentos para ambos, programando mantê-la por mais algum tempo em cativeiro.
Atordoada com a força da pancada, recupera lentamente os sentidos que a hão-de tirar dali. Que ódio daquele paspalho perturbado, que a todos enganou com seu ar sereno e confiável, pensou ela. Sem poder gritar, nem movimentar pés e mãos, desespera por uma solução rápida que a liberte dos designíos do Mal. Em boa verdade, a necessidade aguça o engenho e foi com essa urgência que Marlene apurou sua esperteza. Esquecido no bolso das calças jazia o isqueiro, combustor de um vicío, condenado pela sociedade patriarcal, que privilegia o recato nas mulheres de família. Às escondidas, acalmava a ansiedade própria de uma juventude instável.
Bendito objecto non grato, que a desembaraçou das ataduras improvisadas pelo seu raptor. Acelerou o passo e correu até casa sem olhar para trás. O caminho era longo mas Marlene, enganava o cansaço com a sua obstinada vontade de fuga. Quando encontrou sua mãe, entretida no jardim de casa, só lhe apeteceu abraçá-la e ficar em segurança no seu colo, mas foi dissuadida pela má reacção da mãe à sua chegada. Eram recorrentes as suas implicâncias com os atrasos de Marlene para jantar. Só que desta vez não foram as passas que a atrasaram. Não valia a pena debater com a mãe suas razões. Ela iria encará-las como desculpas esfarrapadas para escapar dos castigos. Marlene, gramou com todos eles e sentiu em todos eles o desgosto de uma mãe movida pelo abandono. Até parecia que ela era culpada do seu estado de infelicidade. A mãe nunca a compreendeu e enquanto não apagasse o passado de amargura, jamais a compreenderia. Por isso aceitou mais um castigo e abafou o caso. Apenas sua melhor amiga soube do susto que viveu e até ela custou a acreditar. Comprometeu-se a revelar o segredo de Marlene, caso a amiga incorresse em perigo. Tal não foi necessário.
Iládio, temendo ser desmascarado, saiu de casa dos seus pais e converteu-se à clausura dos padres beneditinos, sem nunca ter confessado seu maior pecado.
Samuel termina a sua pesquisa, fotografando o lugar de perdição dessas duas almas desencantadas com o amor. Uma com falta de amor e outra com excesso dele. Qual destes traumas causa mais transtorno? Esta será a questão que Samuel irá desenvolver na sua tese de apresentação sobre os Perigos do Amor nas suas múltiplas facetas, que dedicará ao seu preferido contador de histórias de sempre e também seu avô.

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