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segunda-feira, 15 de agosto de 2011

Piano Mágico


Soaram as vinte horas no relógio vertical que marca o estilo clássico da sala de jantar, com seu frondoso lustre de cristal, mobília de estilo, carpete em relevo, trabalhada manualmente com fios de seda, o luzidio piano de cauda Shumann e sua banqueta em veludo encarnado, candelabros em prata, que saltitam de móvel em móvel, emprestando-lhes a sua graciosidade altiva. Aos poucos os presentes foram chegando e instalando-se em seus lugares habituais, cumprindo mais um ritual familiar, que instiga uma convivência programada e nem sempre desejada. Naquele instante, todos saem das suas tocas, interrompem seus caprichos pessoais e, ordeiramente, descem para jantar. Com ou sem fome, garantem sua presença, cabendo a eles decidir se vale a pena quebrar o silêncio com suas participações activas na animação daquele momento, que se repete todos os dias, sem excepções. Mil calorias depois, dispersam-se e voltam a fugir para a segurança das suas tocas. Alguém se ocupará do resto. A sala volta a ficar vazia e impecavelmente arrumada para o próximo encontro.
O gato persa invade com cautela a living room, temendo ser engolido pelos antepassados, congelados nos retratos que forram as paredes, bem isoladas da passagem da modernidade.
Ouve-se apenas o tilintar cerimonial das grinaldas de cristal que iluminam todas as raridades daquele espaço de convívio.
A juventude ocupou o andar de cima, transformando-o numa resistência à permanência da antiguidade.
Gustavo, prevenindo invasões, colou na porta do seu santuário um Not Disturb com neóns luminosos, oferta de Miss Dangerous, sempre atenta à sua frequência assídua na Strip House. Além de ter sido agraciado com um presente de extrema utilidade, para um jovem cheio de secretismos, como ele, também recebeu especial destaque no mural da Strip House, com um nome mui a preceito. Pure Touch. Se bem que, o que Gustavo procura, para além de um touch particular que comunique com vários estímulos, é a sensação de ser um Homem completo.
No quarto, ao lado do seu, habita a ingenuidade de Belinha, que farta-se de sonhar com o princípe encantado e seus rasgados elogios à sua jovem beleza. O Tal que a faça sentir uma princesa, dona do seu coração. Infelizmente, até aqui só tem encontrado sapos, sem tacto para a sua delicada veia romântica.
No outro aposento vive Joel e suas obssessões ambientais. É nesse espaço que aproveita para dirigir a sua campanha de sensibilização ecológica. Não há um único objecto no seu ecossistema, que não seja reciclado. Até as descargas sanitárias lá de casa são controladas por si, bem como, o consumo do papel higiénico. Todos foram intimados a reciclar. Até mesmo o gato fósforo, não escapa a essa intimação.
Os banhos são vigiados e todos os gestos que comprometam o ambiente.
Sua namorada não aguentou a pressão e abandonou-o com justa causa. Toda a Mulher sucumbe a alguns luxos. Para Joel, luxo é sinónimo de desperdício e desgoverno.
Cátia alcançou o seu limite, quando ele começou a implicar com o seu gasto em guardanapos de papel, nas suas raras saídas para comer pizza.
Os pais, isolaram-se no andar de baixo, onde se cultiva a rigidez familiar e o respeito pela tradição geracional.
O gato fósforo é o único a conviver com ambos os mundos e a lamber as feridas de uns e de outros.
Quando a Mãe Ester quer convocar os três para colaborar nos compromissos domésticos, recorre ao seu assistente fósforo e sua hábil capacidade de captar atenções. Ao bichano ninguém nega atenção.
Até o Pai Agostinho se afeiçoou a ele e não prescinde da sua presença, quando se barrica na garagem, para matar o seu vício do bricolage.
Antecipando as badaladas histriónicas do relógio quartzo, Ester experimenta romper o silêncio, recuperando o seu talento musical através da domesticação do piano, que durante anos não passou de um objecto decorativo. Em sobressalto, Gustavo, Belinha e Joel, são atropelados por algo inesperado e que os remete para o prazer que sentiam quando a Mãe tocava para os adormecer. Já se tinham esquecido de quão importante foi o seu crescimento ao som de Shumann. Apesar do seu som ser um excelente calmante, também trazia animação à comemoração dos seus aniversários. Tudo dependia da melodia nele reproduzida.
Hoje acumulam vários interesses que os desviam do contacto familiar desinteressado. 
Mesmo assim sentem que, ainda faz sentido estarem juntos, apesar de todas as distracções a que estão sujeitos.
O relógio deixou de atacar os seus silêncios individuais. A suavidade das notas que o piano evapora, passaram a reclamar suas presenças sem incomodar seus sentidos. Aos poucos encaram a interrupção dos seus egoísmos pessoais, como um bem necessário a cultivar, para que não se perca o espírito de coesão familiar.

Acordei o mundo

Najla tinha muita dificuldade em dormir. No seu entender, a vida podia acabar se se deixasse adormecer. Uma convicção implantada, desde a m...