quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Acordei o mundo

Najla tinha muita dificuldade em dormir. No seu entender, a vida podia acabar se se deixasse adormecer.
Uma convicção implantada, desde a morte súbita, do seu tio Caleb, durante a noite e enquanto dormia.
Uma morte santa, para a sua mãe e injustificada, para Najla.
A perda inesperada, remexeu num sentimento, ainda intocado e agravou, inevitavelmente, a sua dificuldade em dormir.
Assim que, os olhos de Najla ameaçavam desaparecer, encobertos por olheiras profundas e descarnadas, a mãe, não hesitou em pedir ajuda ao médico de família.
O Doutor Ganges ou “o cuidador com jaleca”, como gostava de ser tratado. Apesar de oficialmente aposentado, continuava a prestar cuidados, a alguns pacientes especiais e algo aflitos.

Najla, a tua mãe está muito preocupada contigo. Confessou-me que, passas as noites em branco — avançou o Doutor Ganges.

Ninguém parecia compreender os motivos que a impediam de dormir tranquilamente.

“O mundo lá fora é, simultâneamente, intrigante e deslumbrante, cheio de dicotomias, para eu perder tempo, com sonecas prolongadas”, pensava ela.

— Eu preciso viver. Dormir atrai a morte, como atraiu o meu tio Caleb — afirmou Najla, incomodada.

Quando a mãe de Najla telefonou, em apuros, tudo parecia indicar ser um problema fisiológico, muito provavelmente, causado por um mau funcionamento respiratório ou por dores de crescimento. Após conversar com a jovem, o Doutor Ganges percebeu que a raiz do problema era outra.

Desta vez, a consulta iria ser mais demorada do que o normal, mas pródiga, em conforto emocional.

A sua experiência e sensibilidade iriam sobrepor-se à cátedra de médico generalista, em modo automático.

Nestas ocasiões, a melhor prescrição é uma boa dose de conversa, alguns esclarecimentos, muita compreensão, um coração gentil e maduro.

— Ora bem, Najla, agora entendo a tua principal preocupação — disse ele, com gentileza.

    O teu tio viajou mais cedo, não porque, foi apanhado a dormir profundamente, mas, porque, o seu coração, subitamente, parou. Nem houve tempo, para sentir dor. Uma raridade. Por isso, a tua mãe chamou à sua partida, uma morte santa.

— A dor precisa de tempo e espaço para se anunciar e, posteriormente, materializar-se. 

O corpo dá sinais e a tua atenção plena a essas sensações incómodas, permite aos médicos, como eu, atuar na sua eliminação ou travar a sua ramificação — concluiu o Doutor Ganges.

Najla, pareceu entender.

— A dor de que fala é física. Porém, as dores que me aprisionam, não vêm do corpo. São dores subjetivas.

A Saïdia, a minha melhor amiga, diz que, sente o mesmo. 
Ela até diz que, há dias, em que essas dores são mais intensas e pesadas.

Olhou para o vazio, entregando-se à reflexão.

— No autocarro, na escola, na rua, na padaria, até à saída da igreja, ouço vozes a suplicar por ajuda.

É estranho!

As histórias de dor que habitam o bairro, não me são indiferentes. Todas elas fazem eco no meu coração esponjoso e frágil.

O facto da minha mãe e avó, ocuparem-se dos problemas dos outros e não se inibirem de comentá-los, enquanto, preparam as refeições, não facilitam a minha vida. A gravidade com que falam sobre o assunto, fere a minha sensibilidade e encara-os, como se fossem meus. Se procuro saber um pouco mais, elas animam-se. No final, retiro-me para o meu quarto, visivelmente abalada. 
O cheiro a medo e desespero entranha-se e não sai, nem com purgas. 
Até o meu gato Curcúma, desaparece sem deixar rasto. Só reaparece, quando ouve a lata de atum gourmet tinir, anunciando a chegada da refeição noturna.

Após os desabafos de Najla, o Doutor prosseguiu com a sua missão voluntária de apaziguamento.

- O mundo está cada vez mais doido e desalinhado, com um dos grandes valores morais, que deve servir de farol, para a tomada das nossas deciões e práticas habituais. Falo do amor ao próximo. Os mais sensitivos, como tu, são muito conscientes dessa enfermidade social e entendem a sua importância - continuou o Doutor Ganges, a pregar a doutrina, dos que ainda se importam. 
A paz em falta na tua comunidade e noutras, resulta dessa inconsciência e desresponsabilização pela dores e carências do outro. 

- Ocupa-te do que consegues mudar - aconselhou, o Doutor Ganges.

- Vê o meu caso. Eu considero-me um agente da paz. Ao longo destes anos, ao serviço das comunidades, onde estive destacado, cuidei do bem estar físico e emocional dos meus pacientes. O cuidado é o melhor dos afetos!

A conversa ia solta, até que, a mãe de Najla, faminta por novidades, decidiu esgueirar-se, sorrateiramente, atrás da porta entreaberta da sala. No seu encalço e em silêncio, ia o gato Curcúma, exibindo o seu pêlo sedoso e metediço. A perseguição fê-lo distrair-se e 

vassourar as pernas da sua dona, fazendo-a soltar um soprano guincho. 
Najla repreendeu a mãe, por tamanha infantilidade. A sua salvação foi o Doutor Ganges e seu convite apressado para participar da conversa.
Nem houve oportunidade para tirar satisfações de tal ousadia. O Doutor, prontamente, retomou o assunto, dizendo que, a origem do problema tinha sido desvendada e a forma de o resolver, implicaria a sua colaboração. 
Sem nada perceber, mas com muita vontade de colaborar, aceitou o repto sem reservas.

- Eu podia receitar-te chás com propriedades tranquilizantes, químicos, meditação, técnicas de relaxamento, para combater essa resistência estoica ao sono mas, eu sei, que não vão atuar com total eficácia e, acredito que, acabarás por interromper o tratamento. 
O cansaço resultante de um dia preenchidíssimo, também, não te vai fazer sucumbir ao descanso. Inclusive, pode surtir o efeito contrário e acentuar essa resistência militante ao sono. 
Há uma urgência em ti, que não vou conseguir calar. Nem é esse, o meu propósito.

As notícias que invadem a tua redoma de segurança, vão continuar a salpicar os teus dias de sensações boas e más. É inevitável!
Rezas, cantigas, modinhas, mezinhas, tisanas, danças tribais e amuletos, funcionariam, apenas , como distratores e iriam precipitar a fuga do gato Curcúma para parte incerta.

É aqui que o Doutor Ganges faz um desvio gigantesco e inesperado no seu discurso. Algo desconcertante e improvável acontece. 

Sem cerimónias, o médico, atira com uma proposta nada ortodoxa.

Em tempos alguém disse que ele, por vezes, perdia o juízo e receitava missas em latim, sobretudo, aos pacientes com queixas diárias e repetitivas - lembrou, em silêncio, a mãe de Najla.

- A única solução para o teu caso é recorrer a uma sessão espírita, que promova um encontro entre ti e o teu Tio Caleb. A comunicação terá de ser conduzida por uma médium, especialista em cruzar pessoas, que se encontram em planos espirituais distintos. 
Nesse caso, terias de estar preparada para receber o seu espírito. Não sabemos de que forma o vamos encontrar. Há espíritos inconformados, irados e despreparados. O do teu tio pode, muito bem, ser um deles.

Najla e a mãe estremeceram de medo, com a ideia alternativa e sinistra, do Doutor Ganges, para combater insónias e recuperar a paz e tranquilidade perdidas.

Qualquer dia estou a cuspir fogo num anfiteatro romano, desses, que são recuperados para receber exibições circenses e outras recriações históricas - pensou Najla, ainda incrédula, com a sugestão paranormal, que lhe foi arremessada.

A mãe sacudiu a cabeça em sinal de repúdio, enquanto que, Najla, ficou de pensar no assunto.

Ambas acompanharam o Doutor Ganges à porta de saída e agradeceram a sua pronta disponibilidade para ajudar.

A mãe virou costas e correu para a sala, ligar a tv no canal das notícias, em busca de novas tensões realistas e terrenas. Quiz sacudir o encosto deixado pelo Doutor Ganges e seu plano obscuro de cura sobrenatural. Por sua vez, Najla refugiou-se no quarto dos pensamentos profundos, afundada no pêlo macio e dócil do seu amigo doméstico. 

O dia ia a meio e o sol de outono bocejou junto à sua janela.
A luz filtrada entrou suavemente e amornou o ambiente, deixando-o ainda mais aconchegante e confortável. Não tardou, a atingir o Curcúma, que acabou por se render a um sono anestésico, bem juntinho à dona dos melhores cafonés. 
Esta luz parecia diferente das anteriores. Era uma fonte de luz inebriente que abraça e nos envolve, de uma tranquilidade transformadora. Mordeu o seu cansaço e cobriu-a de uma moleza rasteira, que a fez escorregar de sono e entregar-se aos sonhos.

Houve tempo para tudo, até para visitar o seu Tio Caleb, no seu refúgio campestre, rodeado de animais e feliz na sua nova condição. Najla percebeu que estava em paz.

Nas proximidades, vivia o Doutor Ganges e, Najla sem saber, tropeçou de curiosidade e bateu à sua porta, em busca de respostas. Parecia até que estava à sua espera. Recebeu-a com um sorriso terno de satisfação e convidou-a a entrar.
Ainda hesitou, mas o Doutor é quase família e não havia motivos para recear.

- O que faz aqui? - perguntou Najla, à queima roupa.

Eu nunca saí deste lugar. Tu é que vieste ao meu encontro e eu acolhi o teu espírito ativista, que não economiza preocupações. Vinhas agitada, cansada, revoltada e eu ofereci-te um chá, feito com as milagrosas ervas de São João, colhidas do meu jardim. A minha intenção era acalmar essa tua urgência em transformar o mundo, num lugar mais justo e equilibrado. 
Ganhamos um pouco mais de amizade mas, entretanto, as propriedades analgésicas do chá atingiram-te como um torpedo e caíste num sono profundo - respondeu o Doutor Ganges.
Novamente, a luz solar e sua entrada triunfante, vieram castigar os seus olhos semicerrados, obrigando-a a acordar e encarar a realidade caseira, que berrava da cozinha para ir jantar.

- Acordaram o mundo ou eu é que acordei? - soltou Najla, ainda com preguiça. 


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