sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Sancho, o reconciliador

A separá-los, existia uma mesa, com dois metros de comprimento e, no centro, um candelabro que mais parecia um poste de iluminação caseiro, concebido ao jeito de Joana Vasconcelos, grande e majestoso. Cada um ocupava a sua extremidade e parecia ignorar o óbvio. O silêncio era avassaladoramente incómodo mas, mesmo assim, preferiam-no a dispender energias em vão. Aquele lugar, outrora iluminado e leve, tornara -se sombrio e pesado.
Vieram a adotar as mesmas atitudes que lamentavam nos outros. Perderam a intensidade. Perderam a vontade. Perderam a consideração. Perderam a admiração. Perdeu-se a fantasia. Na verdade, foram perdendo tudo aquilo que sustentava a sua união. Ambos sentiam que precisavam recuperar aquele passado bom e prazeiroso mas esgotaram suas forças na luta pelas suas próprias razões e mágoas e já não conseguiam abrir mão dessa determinação obstinada.
O Sancho, era o único a interromper esse silêncio e a promover alguma interação entre o casal. Sua chegada espalhafatosa ajudava a sacudir aquela nuvem negra que pairava no ar.
 Seu pêlo sedoso, seu olhar meigo, doce e suplicante, não os deixava indiferentes e, rendidos desviavam-se da sua indiferença, por instantes, para lhe dar atenção. Porém, essa manifestação emocional durava muito pouco e o regresso ao isolamento impunha-se novamente. Sancho era o principal responsável e provocador da erupção de sentimentos que emergia das suas almas desencontradas. Sem saber, as suas saídas com o dono para aliviar bexiga e tripa coincidiam com as saídas do cão sorna da vizinha jeitosa do prédio em frente, que inevitávelmente produziam efeitos colaterais na dona do Sancho que via aquilo como um pretexto para se reencontrarem e flirtarem, mesmo debaixo do seu nariz adunco. Ciúme e sentimento de posse esquentavam o ambiente, sempre que Sancho e Ezequiel regressavam do passeio. Nem havia tempo para raspar a sola dos sapatos no tapete da entrada e já Helena subia o tom para reclamar do passeio prolongado. Apesar das suas reações serem provocadas pelo chamado monstro dos olhos verdes (ciúme), negava sempre  e tentava, em vão, convencê-lo de que o motivo da sua súbita irritabilidade revelava apenas preocupação com o Sancho. Ezequiel bem tentava explicar-se mas quanto mais o fazia, mais ela encarava como desculpas para se aproximar da loira de cabelo pranchado e peito siliconado. Que pena o Sancho não poder falar, pensava ela.
Arrependia-se, mais tarde, do folclore explosivo de reações geradoras de discussão, pois sabia bem que Ezequiel só tinha olhos para ela, mesmo nesta ocasião em que estão de costas voltadas. Parecia indiferente mas não passava de disfarce.
Na cama fria que descobriam todas as noites existia um fosso a dividi-los e, cada até amanhã dado  antes de adormecerem, arrastava-os para uma despedida sem retorno.
Sancho estranhava seus comportamentos orgulhosos e enroscava-se no meio dos dois para recuperar hábitos antigos em tempo de união. Lá ia lucrando com festinhas e pedaços generosos de bolo caseiro. Sem querer Ezequiel e Helena retomavam o diálogo, com tendência para evoluir favoravelmente para uma reaproximação e noites mais quentinhas.
Até a morte, por preguiça crónica, do cão sorna, da vizinha matadora, de look arrojado, ajudou a  apaziguar os ciúmes.
A mesa de dois metros de comprimento deu lugar a uma mesa sem extremidades e o único motivo de adorno são as suas mãos entrelaçadas.

sábado, 15 de novembro de 2014

Descontentamento Descontente

Tenho tudo e não tenho nada. Sei de tudo e não sei de nada. Ter tudo e saber tudo ou nada saber e nada ter? Qual destas combinações traz felicidade? Será que a Felicidade é a ausência do saber e do ter ou a totalidade da posse e do Saber?
Ter tudo e saber tudo, não passa de uma crença nossa, que não retrata a realidade. No entanto, não vivemos na completa ignorância nem com ausência de tudo. O que nós sabemos e temos é que pode significar tudo para nós. O nada ter e nada saber não combina connosco. Poderemos ter essa sensação, talvez por ser tão fundamental ter e saber e, por esse especial motivo, cresce em nós o descontentamento de ainda nos parecer insuficiente e esse pouco, parecer nada.
Certamente serão mais leves as ausências sem carências do que os excessos com o total conhecimento de tudo.
Felizes os pobres ignorantes ou felizes os ricos sabichões?
Ter e Saber são dois poderes demasiado pesados e comandar as influências que ambos geram, determina a qualidade do nosso caráter. Os que julgam nada ter e nada saber, não se comprometem nem se deixam corromper por esse duplo poder. Quem comanda, assume o que tem e assume o que sabe e conquista a posição que quiser. Porém o preço a pagar é maior e sem margem de negociação.
Os que dizem viver na ignorância preferem questionar e certezas, são cometas distantes que só provocam interesse sem obsessão. São movidos pela curiosidade e o que têm, jamais chegam a possuir. Enriquecem partilhando.
Afinal não somos donos de nada nem do nosso cão, que a qualquer momento também pode abalar e nos abandonar. Não temos domínio sobre nada nem ninguém e se o temos, é mera ilusão. O que nos é dado também pode vir a ser-nos retirado.
Bem se diz, nunca queiras possuir o que tanto gostas pois corres o risco de vir a depreciá-lo.
Uns colocam barreiras no saber, outros colocam barreiras no ter. Eis a diferença. Liberdade para aprender e contenção na posse do que corrompe. Onde escolhemos colocar essas barreiras, assume importância no sentido que queremos atribuír à nossa Vida. Nem sempre fazemos escolhas que traduzem maior felicidade. Nem sempre essas escolhas traduzem o que queremos. Nem sempre o que queremos é condutor de maior felicidade. Nem todas as escolhas recaem apenas sobre nós.
Muitos de nós só saberão o que é ser feliz quando provarem a infelicidade.
Agarrarmo-nos sempre ao momento seguinte, à ilusão do que pode vir a ser melhor, num descontentamento descontente de quem não sabe o que quer.







terça-feira, 11 de novembro de 2014

Um dia vais entender

Quando fores crescido vais entender todas as minhas preocupações, a minha vontade de te abraçar e beijar a toda a hora, meus avisos, meus cuidados redobrados, minhas incursões durante a noite ao teu quarto para vigiar o teu sono, minha impaciência, minhas escolhas, as camadas de roupa que te obriguei a vestir, as minhas manias do boné e do protetor solar ao longo do ano, as minhas corridas para te alcançar, cada vez que corrias livre e desimpedido, os fretes que te fiz passar, as minhas insistências, as cantigas que arranhei com a minha voz desafinada, as vezes que te medi a temperatura do corpo, as visitas regulares ao homem da espátula de pau e bata branca, as paranóias com as corrente de ar, o meu olhar cansado, as minhas maluqueiras para te enfiar o maior número de colheres possível de sopa, as minhas cócegas na hora da mudança da fralda, que nem sempre acabavam bem para o meu lado, os rituais de limpeza diários, as considerações trocadas com a tua educadora que te roubaram alguns minutos de brincadeira, o esconde esconde das prendas de Natal que te picavam  a  paciência mas ajudavam-te a valorizar os gestos e conferir um caráter especial aqueles momentos e desvalorizar o pacote, as minhas sessões de sensibilização nas épocas especiais sobre a sorte em teres nascido num seio familiar equilibrado, capaz de oferecer conforto, bem estar, harmonia, os beijos roubados que te dei, as histórias que quiz que conhecesses, as saídas repentinas das festas, antecipando o dia seguinte, a importância dada ao sono e ao descanso, as inúmeras vezes que te afaguei o cabelo contigo a protestar, as vezes que te obriguei a ficar na mesa até todos se levantarem, as gargalhadas que soltei sem que tu nada entendesses mas que mais não eram que explosões de alegria por ti provocadas, a quantidade de vezes que me apanhaste a olhar para ti deslumbrada, os meus nãos, os meus sins, o rompimento do teu nome, vais entender as manhãs stressadas da Mãe, os nomes estranhos que te chamei em frente a estranhos, as vergonhas que te fiz passar, as não cedências às tuas birras, a retirada minuciosa das grainhas, pevides, ossinhos, casquinhas, que não chegam para travar tua voracidade crescente, um dia vais entender isso e muito mais.
Vais entender o que é amar verdadeiramente e o sofrimento que causa. Por enquanto, posso parecer protetora demais, chata, inconveniente, melosa, grudenta, maníaca do absoluto controlo das coisas, exigente, stressadinha mas este exagero todo é porque não consigo calar o imenso Amor que sinto por ti.

Acordei o mundo

Najla tinha muita dificuldade em dormir. No seu entender, a vida podia acabar se se deixasse adormecer. Uma convicção implantada, desde a m...