Há sonetos e sonetos!
Assim
entendia a direção do liceu feminino, Vargas Melo, frequentado por Amália.
O
soneto que Amália ousou ler, longe dos olhares espelhados e atentos, das
vigilantes da biblioteca, era um desses. Um incendiário moral, nada
educativo.
Apesar
de todas as contrariedades, continuou, mas o embaraço fê-la corar
abundantemente e dar por terminada a leitura, para não atrair atenções incriminatórias
e ser chamada à sala da reitoria.
As
cócegas na garganta, provocadas pelo pó esvoaçante, descarnado, das lombadas do
livro abafado e proibido, fizeram-na tossir descontroladamente e acordar os
espíritos de um passado quinhentista. O primeiro a acordar e mais afoito de
todos, foi Luís Vaz de Camões.
Apercebendo-se
do interesse pelo seu soneto de amor, Camões, decide ressuscitar numa nuvem etérea,
envolta num pó cinza e dirigir algumas palavras clássicas, à sua cândida leitora.
-
Vejo que a menina se enfeitiçou pela minha poesia lírica, o que muito me apraz.
Amália
congelou de medo, medo esse, que fez paralisar os seus movimentos e deixá-la muda.
Os efeitos do congelamento ainda duraram uns eternos segundos, até regressar ilesa,
ao seu estado normal e conseguir formular uma resposta adequada.
-
Na verdade, eu nem deveria estar aqui, a ler às escondidas e corar de desejo.
Desejo de sentir o amor e tudo aquilo que diz provocar. Neste momento, sinto-me
impura!
A
sua elevada inteligência e sensibilidade compreenderam os pensamentos de uma
menina, em breve, mulher, perseguida por julgamentos sociais.
Sabia
que, teria de usar o tom certo para a manter interessada e evitar que renunciasse
a algo que desconhece, mas arde em saber.
-
Menina Amália, o amor é tudo menos impuro. Ele é mantimento! – acrescentou
o poeta, na esperança de não a perder para o isolamento.
-
Como assim, mantimento? – retorquiu, Amália.
Uma
vez conquistada a sua atenção, Camões prosseguiu e respondeu a todas as inquietações
da sua pupila da atualidade, elevando o amor a todos os seus expoentes.
Entretanto,
o intervalo de almoço termina e soa o toque, para retomar as aulas da tarde.
Cada um, sumiu para seu lado e nem houve tempo para despedidas épicas.
O tempo voou veloz, pelo menos para Amália, agora mãe, de uma menina chamada Benedita, aluna no mesmo liceu, outrora, exclusivamente feminino.
Benedita
está crescida e cheia de vontade de contrariar a autoridade. Pais e professores
são os mais visados.
-
Acho que, está na hora de chamar o meu bom e velho amigo Camões, para me ajudar
a entender que mundo é este, que abre um fosso geracional entre velhas e novas
mentalidades – pensou Amália, baixinho.
No
tempo de Amália, o amor era recatado, a autoridade não era questionada, as
ousadias pagavam-se caro, o trabalho era uma prioridade, os artistas não eram
livres, a cultura era comandada pela censura, a justiça obedecia a um estado
repressor, não havia liberdade de expressão. Entretanto, muita coisa mudou.
Desta
vez, Camões apareceu suavemente e sem sobressalto.
- Apraz-me saber que exploraste o Amor de que
falo no meu soneto – disse Camões, interrompendo o silêncio,
sorridente.
-
Que bom ver-te! – exclamou Amália, entusiasmadamente.
Felizmente,
Benedita tinha saído mais cedo e sobrava tempo para falarem a sós, sobre todas
essas mudanças, que foram ocorrendo e desarranjaram as relações interpessoais.
-
Amália sinto-te preocupada com a Benedita e suas atitudes afrontosas.
-
Entre nós há cinco séculos de distância e uma longa história de destruições e
reconstruções. Vejo que aboliram as fronteiras, mas não acabaram com as
batalhas territoriais sangrentas – prosseguiu.
-
Os ganhos na conquista de uma maior e mais diversa liberdade de expressão,
precipitaram o crescimento desenfreado de meios de comunicação alternativos,
que ameaçam acabar com a verdade e criar um universo de mentiras escandalosas e
perniciosas – acrescentou Camões, do alto da sua sabedoria
secular.
Amália
permanecia calada e pensativa. Afinal, ela sabia que havia motivos para se
sentir apreensiva com Benedita, seu futuro e o estado do mundo.
-
Porém, tem havido manifestações culturais e artísticas sublimes, que vos
distraem de tudo isso e apesar de não bastarem para mudar o estado das coisas,
têm o poder de mudar a forma como olhais para a vida, o mundo e representam
chamadas de atenção, alertas, para os espíritos mais sensíveis, como os da
Benedita, capazes de construir um mundo melhor –
prosseguiu Luís Vaz de Camões.
Continua, continua. Estou a gostar de ouvi-lo – pensou ela.
Nesta
época natalícia as aparições camonianas são muito comuns na família Vasconcelos.
A proximidade de um novo ano, as reuniões familiares atrapalhadas, o balanço
dos acontecimentos individuais, os arranjos e desarranjos natalícios, convocam
a presença de uma figura história ilustre, do passado artístico português, experiente
em missões difíceis.
-
Há quinhentos anos que eu sou o recurso de todos os vossos natais – constatou
o poeta e dramaturgo português.
-
Sou uma espécie de pai natal exclusivo, zarolho, com veia poética e uma visão
modernista, a quem todos recorrem, quando algo os incomoda.
Amália
anuía com a cabeça, em concordância.
-
O Amor é mantimento, minha cara Amália. Não se esqueça disso! –
avançou Camões.
Esta
era a frase que finalizava todas as suas conversas. Indicava a hora de
regressar ao seu passado renascentista.
Mais
uma vez, não houve despedidas. O que houve foi uma mudança de cenário, com a
entrada apressada de Benedita.
-
Mãe, Mãe, tu não vais acreditar o que acabou de acontecer –
disse Benedita agitada.
-
Cruzei-me com um homem vestido de Camões e senti uma energia boa, que me fez
virar. Nesse instante, ele fixa o olhar em mim e diz-me que, o Amor é
mantimento!
-
Achei bizarro! – exclamou Benedita.
Amália
esboçou um sorriso cúmplice e rematou – Ele disse-me o mesmo!
Incrédula,
Benedita, sacudiu a cabeça e questionou a mãe – Como assim?
Por
momentos, Amália quis descair-se e relatar as visitas sucessivas, feitas pelo
mestre da poesia, desde o tempo da sua mocidade. Conscientemente, travou a
tempo. Benedita não iria compreender e só iria remexer ainda mais a sua vida de
adolescente inconformada.
-
Estou a brincar! Se bem que, essa réplica ambulante de Camões, não disse
nenhuma mentira. O Amor é mantimento, é a seiva que nos faz viver melhor. Após
este momento reflexivo de Amália, fez-se silêncio e desenhou-se o mote para
criar sonetos novos, tendo o amor como protagonista. Um desejo acalentado por
Amália para este Natal.