Salomé detestava que a amiga atraísse as atenções daquela maneira mas, por mais que lhe rogasse que não o fizesse, mais ela insistia em fazê-lo.
A discrição de Salomé esbarrava com a efusividade da amiga. No entanto, achava graça a algumas das suas manifestações impensadas e irresponsáveis, tão naturais e sem segundas intenções. Acontece que, nem todos encaravam bem os ímpetos da sua amiga e ofendiam-se com suas atitudes, que reclamavam exageradamente atenção. Dulce nunca soubera controlar a ansiedade e dosear as emoções, que a assaltam numa cadência acelerada e inesperada.
Já em andamento, informou que ia levá-la a almoçar a um lugar diferente do habitual. Um espaço modesto, acolhedor, de cariz familiar, experiente na estimulação dos sentidos induzida através do seu menu caseiro, testado diariamente por todo o tipo de paladares, que à saída não escondem sua satisfação.
Salomé ficou curiosa e subitamente esfomeada com a descrição da amiga.
À medida que se aproximavam do seu destino de almoço, Salomé sentia uma ansiedade inexplicável e inquietante. Ao dobrar a esquina e deparar-se com aquela casa antiga com a tinta descascada pelo tempo, grandes vidraças que mais pareciam painéis solares, porta exterior do século passado que simulava estar a isolar um forte militar, sentiu a forte presença do seu passado.
Esse lugar foi em tempos visita regular da sua família e traz-lhe muitas saudades. Algo que ela já não reavivava a algum tempo.
Passaram trinta anos e nada mudou, nem as sensações que Salomé sente ao pisar de novo esse chão, onde ela e seus irmãos deslizavam de contentamento. Amavam estar juntos, sempre sob olhar atento dos seus pais, que custaram a aceitar seu crescimento e sua independência.
Salomé é a mais velha de três irmãos com idades muito próximas, a mais responsável, a mais sensível, a mais saudosista, a mais carente, a mais reservada, a que mais sofreu com o distanciamento familiar. Naquele tempo não se desgrudavam nem se cansavam da companhia, que entretanto foi substituída por outras bem melhores que agora são presença assídua nas suas agendas, fazendo-os esquecer daquele tempo do qual Salomé sente a dor da saudade. Sem querer, soltou uma lágrima ao relembrar as emoções do passado, naquele lugar que encerrou um capítulo tão importante da sua Vida.
Viviam num mundo fechado, sem desvio de atenções, concentrados uns nos outros e distribuindo amor e atenção por todos. Até que, foram obrigados a socializar com a entrada na escola, a participar das actividades extra curriculares, a conviver com os amigos, a respeitar os professores. Mais tarde, a aprofundar as suas relações amorosas, a dedicação ao emprego, a comparecer nas reuniões do condomínio, nas reuniões de pais, nas festas de aniversário, a assumir responsabilidades financeiras, a dormir pouco, a temer o futuro, a gerir conflitos e como resultado de tanta pressão exercida pelo excesso de compromissos, esqueceram-se de como é Amar.
Salomé tem saudades da mão estendida do Pai que ela gostava de apertar, da ternura com que a Mãe cuidava dos pormenores para que nada lhes faltasse, das gargalhadas dos irmãos que tantas vezes acordaram a avô Rosalinda e seu mau feitio, do Natal na aldeia com toda a família representada, dos mimos, dos abraços, do aconchego, da protecção, do Amor sem concessões.
Dulce, sem entender qual a mística que aquele lugar encerra, interrompe os pensamentos de Salomé e pergunta o que lhe apetece para almoço.
Salomé responde: o churrasco de há trinta anos atrás.

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