terça-feira, 31 de maio de 2011

Outsider

Bárbara nasceu com o nome que sua mãe gostaria de ter tido. Aliás nem teve opção. Ainda nem ela era nascida e seu destino já estava traçado. Bárbara seria o modelo de pessoa que sua mãe gostaria de ter sido e não foi, por culpa das más opções que tomou. Se soubesse da intenção da sua mãe, não teria nascido prematura, adiando por mais algum tempo o castigo de viver o sonho de vida de alguém. Nem a dependência afectiva fez Bárbara ceder aos caprichos da mãe. Em vez disso, Bárbara criara uma espécie de bloqueio defensivo a toda e qualquer imposição materna. Nunca houve acordo entre ambas. Apesar de nem sempre discordar da sua mãe, não conseguia libertar-se do seu espírito de contradição, que tantas vezes a defendeu de egos fortes e persuasivos. Remar contra a maré durante tanto tempo pode ser muito cansativo. É o caso de Bárbara que não consegue desligar-se desse mecanismo de defesa e, neste momento, debate-se com dúvidas profundas sobre o que realmente faz falta na sua Vida, do que gosta, de quem gosta, quem quer ser, a quem quer agradar. Contrariar os sentimentos que vão surgindo sem aliviar só os vai intensificar ainda mais e deixar que eles exerçam uma pressão ainda maior. Bárbara está sempre em luta com ela mesma e rejeita o que ela mesma desenvolve interiormente. Sua verticalidade de pensamento esbarra com sua exacerbada sensibilidade feminina. Poucos são os seus momentos de descontracção e é em permanente actividade mental que consome ansiedade, porque insiste em resistir às emoções para as quais não existe uma lógica ou então cria-lhes um enquadramento que as torne aceitáveis. Para ela é impensável viver sem razões. É com elas que esgrime a sua independência mental e individualidade.

Bárbara é a personificação da pessoa que sacrifica suas vontades com medo das emoções que possa estimular e, dessa forma, afectar a imagem de quem quer ser aceite. No seu mundo, os seus sentimentos são marcas de fragilidade e algo que os outros estranharão e não compreenderão. Nem ela mesmo consegue interpretá-los como se eles carecessem de interpretação. Sentir é deixar-se levar sem avaliar causas nem consequências. Os sentimentos vão e vêm . Se os aprisionarmos a uma razão jamais seremos livres para sentir sem culpa.
Bárbara é a única flor delicada a crescer na terra árida e sem vida, onde coabitam seres rastejantes que se aproximam curiosos e encaram aquela presença com estranheza e suspeição. Uma sensação de não pertença, perceptível pela reacção nada hospitaleira dos seus anfitriões que não a reconhecem como um dos deles.

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Confiança


Palavra poderosa e qualidade apreciada em qualquer contexto. Condição essencial para sobreviver às adversidades que desafiam a nossa resistência e determinante na conquista de poder pessoal. Quem não a tem sabe atribuir-lhe valor e quem a tem, muitas vezes, esbanja-a inutilmente.
Aqueles que a exibem com excessiva vaidade correm o risco de ser confundidos com arrogantes, desprovidos de sensibilidade para interagir. Afinal estão demasiado agarrados ao poder, que a confiança lhes transmite e não conseguem envolver-se e partilhar experiências. Este tipo de confiança é muito comum e até já há um género que ajuda a identificá-la. Adoram pisar ambientes cheios de actividade humana e ser notados, não disfarçando a satisfação que essa atenção lhes provoca. Investem tudo e nem sequer concebem que haja alguém que não se deixe encantar pela sua descontracção saloia. Isolados perdem a força toda e deixam escapar a sua verdadeira identidade.
Adoram multidões, conviver em grupos grandes, ser o centro das atenções, ser os sabichões que opinam sobre todos os temas mesmo aqueles que não dominam, não sabem conceder ao outro a oportunidade de se expor e brilhar, sem o interromper para afirmarem sua genialidade. Sua confiança é arrasada quando se sentem ameaçados, cada vez que a espontaneidade por parte daqueles que não existem para atrair invejas, acumular ódios de estimação ou  intitularem-se como o único original no meio de tanta cópia, se impõe. 
Os verdadeiramente confiantes não se comportam como únicos no mundo mas confiam no seu valor intrínseco, para garantir o seu espaço e a sua presença.

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Solidão



A Solidão percebe-se naqueles rostos que exibem um olhar distante, sem expressão, vago, despido de emoções, indiferentes a tudo, somente concentrados na sua dor, com que se castigam todos os dias.  A sua disposição não melhora. Faltam motivos para se animarem. Sobram apenas mágoas para carregar, das quais nunca recuperaram, talvez porque faltou aquele apoio, aquele carinho, aquele ombro amigo, aquele abraço, algum gesto de humanidade que não chegou a manifestar-se. Vivem fechados em si mesmos, agarrados a algo que não conseguem curar nem abandonar, porque têm medo de recomeçar mais uma vez, encetar uma nova tentativa pro felicidade e esta resultar gorada e os atirar, sem regresso, para o lugar sombrio donde saíram. Cansaram-se de alimentar a esperança, acreditar que merecem ser felizes, perderam as forças para lutar por algo que não passa de uma miragem, deixaram de sonhar e a persistência desse estado emocional vegetativo  só recebeu acolhimento na solidão. Já não reconhecem o que em tempos os fez felizes, deixando-se afectar por aquilo que um dia comprometeu essa felicidade e amparados pela incapacidade de se libertarem da dor, isolam-se do mundo. Só eles sabem o que sentem e a intensidade com que o sentem. Nem o Amor que os rodeia, os faz ressuscitar do coma emocional. Tudo é tão profundo, denso e pesado na Vida de quem sofre de solidão, só comparado aos filmes de Hitchcock.
Sentir pena de nós mesmos é um sintoma de solidão, que se cultiva com o reforço dos motivos que justificam a nossa condição de vítimas. Acontece que  para alguns, esse lodo que é a solidão, protege-os daquilo que eles julgam vir a repetir-se caso se entreguem novamente ao destino. O risco é grande. Preferem assim sofrer só uma vez, mas sofrer toda a Vida.   

terça-feira, 10 de maio de 2011

O bicho rasteiro que infecta a nossa sociedade

Haverá pior dor que aquela sentida por quem não convive bem com as conquistas dos outros? A inveja é como um vírus, espalha-se e invade todos os espaços, contaminando todo o sistema receptor que só sabe reagir com indignação a qualquer pessoa que goze de uma melhor disposição que a sua. O que não é difícil. Afinal, quem sente inveja, sofre de má disposição permanente. As glórias dos outros são facadas no seu ego irado. Não sabe admirar o próximo, reconhecer-lhe valor, conceder-lhe destaque, prestar-lhe apreço, conviver com o sucesso dos outros sem se colocar em causa. A inveja é indisfarçável. Manifesta-se como uma reacção química, carregando o nosso corpo de uma tensão nervosa, pronta a disparar em todas as direcções, sem poupar nada nem ninguém. Ela alimenta-se da gordura saturada que a faz inchar de veneno, desperdiçando o que é nutritivo, saudável e que a faz crescer com vitalidade.
Os doentes de inveja são perseguidos por um único demónio, ou seja, eles mesmos. 
Para eliminar melgas, mosquitos, baratas, moscas, formigas e todos aquelas nefastas visitas caseiras temos uma linha completa de inseticidas que se encarrega de as fulminar. Até para erradicar fantasmas existe o popular esquadrão ghostbusters, que assegura um serviço cem por cento eficaz. Para ser imune à inveja não faltam amuletos com promessas vãs. Haverá pior bicho rasteiro que a inveja? Nem os ratos procriam tão rápido. É uma das maiores senão a maior epidemia do século vinte e um. 
Faço um apelo aos cientistas do mundo inteiro que unam suas preciosas massas encefálicas e juntos criem um concentrado químico que evite a propagação dessa peste humana também considerada um dos sete pecados mortais. O Prémio Nobel da Química era garantido e merecido.
Com o apoio de Futre, charters de chineses não demorariam a copiar a fórmula e comercializá-la a um preço bem competitivo.     

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Amor não correspondido


Almoço de Família às treze horas, sem atrasos. Assim manda a etiqueta. Sara, nada dada a imposições, mais uma vez, falha na pontualidade e deixa todos suspensos aguardando sua chegada. Seus atrasos não são premeditados, seu ritmo é que não sofre nenhum beliscão mesmo sabendo que o tempo não espera. Apressar-se é palavra não grata e faz transpirar, além de acrescentar excesso de responsabilidade e preocupação. Sara não abdica das suas rotinas, só para chegar a tempo a qualquer evento. Todas elas têm que ser cumpridas, nem que para isso chegue atrasada e tenha que se justificar com o injustificável. Sua Família resignou-se a esse seu mau hábito e já encara com humor a sua descarada falta de pontualidade. Meia hora depois, com todos à mesa confraternizando, chega Sara, no seu porte elegante, imperturbável e sorridente, saudando de longe os presentes, desatentos à sua provocação. Sobrou um lugar junto de Abel. Ambos da mesma idade e muito próximos.
Abel nunca deixou de guardar-lhe assento junto a si, garantindo assim um serão bem animado, repleto de novidades. E de facto assim era. Sara nunca o deixava pendurado em vão. Compensava-o com suas histórias que a todos pareciam cansar, menos a Abel, que se deleitava a acompanhar todos os pormenores da devassa. Sara aproveitava-se da rendição do seu primo, pelo seu estilo de vida, para se orgulhar das suas vaidades, sem receio de comprometer a sua privacidade. Adorava expor-se e chocar as elites, tão ocupadas com suas inúmeras reservas em Ser desabridamente. Nem seus pais e irmãos a reconheciam. Eles tão obedientes e rendidos a pressupostos estabelecidos. Apesar de não ser adoptada, sempre destoou do resto da ninhada, que procura a protecção familiar e evita afrontar seus antepassados. Sara é mestre em contrariar, provocar, quebrar regras, destacar-se e desviar atenções, incomodando tudo e todos. Felizmente há quem goste. Abel gosta e muito, nem Sara sabe quanto. Até a sua falta de educação, quando intervala o diálogo para mascar de boca aberta, deixando um cheiro intenso a mentol no ar, não faz esmorecer o seu grande afecto por Sara. Ele conhece-a melhor do que ninguém e sabe que ela é muito mais que aquilo que aparenta. Afinal o Amor é assim mesmo. Vê coisas que mais ninguém vê.
Abel, sem saber, tinha sido atingido por esse torpedo de emoções que só o Amor provoca. Toda a família suspeitava que havia entre eles algo mais que uma grande amizade mas nunca quiseram aprofundar o que se assume contra natura. Abel não sabia identificar seus sentimentos mas reconhecia que na sua presença, sentia-se soberbo. A Tia Custódia, sua mãe, assistia de longe aquela imensa cumplicidade, temendo vir a tornar-se uma desilusão para o seu menino. Sara não era Mulher para Abel. Campeã em provocar desgostos. Certamente, não deixaria de alastrá-lo a Abel que insistia em persegui-la para todo lado. Ela acabaria por se cansar dele e partir sem aviso. Aliás sempre demonstrou não se identificar com o meio onde cresceu, lado a lado com Abel, seu eterno seguidor.
Abel parecia não se importar em sofrer nas mãos de Sara. Ele só não a queria perder de vista, tamanha era a sua obssessão. A intensidade dos seus sentimentos foi aumentando e assustando Sara, que se via encurralada entre a vontade de estar com seu melhor Amigo e o remorso de estar a suscitar algo que não se vai realizar, porque não é do seu desejo. Como se desactiva esta fixação em alguém, sem comprometer a amizade? Sara vive esse dilema. Culpa-se, agora, por ter abusado de Abel só porque lhe aprazia sentir-se amada. Abel reunia aquilo do qual ela mais carecia, compreensão e carinho. A seu lado, conseguia alhear-se do mau ambiente familiar, composto por pais autistas e demasiado agarrados a valores morais que reprimem as diferenças. Sem entender, a rejeição dos seus pais e irmãos, ao seu modo de ser, procura junto de familiares apurar a sua verdadeira origem e poder justificar o porquê de ser alvo de repúdio. Mesmo após saber não existir mistério algum, envolvendo o seu nascimento, que atribua aos seus pais a condição de pais de acolhimento, não se convence e decide demorar-se numa inspecção minuciosa ao espelho, para aferir as suas semelhanças físicas. Até nisso não restavam dúvidas. O nariz sardento, herdou da mãe e as covas, junto aos lábios, foram oferta do seu pai, bem como, a tez morena que a descendência distante Goeza lhe confere. Não há erro. Sara é uma Moreira de Andrade dos pés à cabeça. Moreira por parte da Mãe e Andrade por parte do Pai. Se o espelho não engana, os registos de perfilhação também não, porque é que não existe uma boa base de entendimento entre Sara e seus pais? Uma pergunta à qual Sara não encontra resposta e se cansou de aprofundar. Abel ajudou-a a superar o trauma do patinho feio, que a ninguém pertence nem a lugar nenhum. Como poderia ela viver sem Abel. Seu anjo da guarda, que ela ocupou durante tanto tempo, abusando repetidas vezes da sua dedicação. A pedido de sua Tia Custódia, Sara decidiu que era melhor libertá-lo para que ele pudesse ser Feliz, ainda que ambos venham a sofrer com esse afastamento. Na sua Vida tem sido uma constante, as solicitações para sair de cena e não contaminar o ambiente que se quer feliz e caseiro. Sem ninguém saber, sumiu para parte incerta mas antes deixou uma carta explicando as suas razões embrulhadas em muita mágoa e tristeza. Quem não entendeu esta atitude foi Abel que ainda alimentava a oportunidade de com ela gerar muitos patinhos feios, iguaizinhos a Sara e sua exuberante forma de ser. Bem hajas Sara.
  

terça-feira, 3 de maio de 2011

Luto



Lídia estremeceu com o arrepio que lhe percorreu a espinha, anunciando a chegada de algo nada auspicioso. Apesar da sensação não ter sido agradável, não se mostrou intrigada nem enfatizou o que acabara de sentir. Sacudiu o corpo e libertou-se daquele mau encosto.
Há quem acredite na capacidade de prever acontecimentos desagradáveis. Basta estarmos atentos à nossa percepção sensorial.
Lídia não se intimidava com arrepios nem explorava o seu lado sensorial e, portanto, tratou de encontrar uma lógica para justificar o sucedido e assim abafar o caso. Para ela tudo tinha uma explicação, que retirava ao mais insólito acontecimento toda a sua atipicidade. Quando recebeu a notícia da morte da sua mãe, não associou aquele arrepio desavindo ao prenúncio de algo doloroso na sua Vida. Não conseguiu viver imediatamente a dor, estava mais preocupada com a  preparação da cerimónia fúnebre, reunir a família, participar o falecimento às pessoas mais próximas, marcar presença e receber as condolências por parte dos convocados, chamar a si todo o cumprimento das tarefas inerentes à despedida final e assim adiar conviver com a perda, tão insuportavelmente incómoda.
À distância, Lídia parecia a menos incomodada com a morte da sua mãe, tendo em conta o seu envolvimento prático e energia aplicadas na organização de todo o acto fúnebre. Na verdade, a ausência de sensibilidade nem sempre é sintoma de indiferença ou desinteresse. Pode muito bem ser uma defesa, para não remexer em sentimentos mal resolvidos, que a perda veio revolver. Lídia amava a Mãe, apesar das diferenças que as separavam. Viveram em épocas diferentes e, por isso, a sua proximidade sempre foi comprometida por esta distância de gerações. A predominância do respeito em detrimento da amizade nunca impediu a existência de compreensão, apoio, colo, carinho e muito amor. O que faltou foram as palavras que o orgulho engoliu mas sobraram gestos, afectos, dedicação, atenção, que compensam esse embargo emocional. 
Todos tiveram oportunidade de se despedir da Mãe menos Lídia. A Mãe merecia que ela estivesse presente naquele último momento mas o tempo não foi seu aliado e  é carregada de culpa que cuida dos detalhes com a funerária.
Não podemos recuar nem  recuperar o que ficou para trás. De pouco adiantam arrependimentos ou massacres emocionais. Eles não vão trazer de volta nossos entes queridos.
Mais tarde ou mais cedo, Lídia terá que enfrentar o luto e lidar com essa dor de uma forma menos angustiante. Ela apenas precisa de encontrar o melhor momento para o fazer. Até lá, vai se convencendo que as rotinas a distrairão da dor.
Não conseguimos abafar o amor que sentimos. Nem mesmo aqueles que recusam expor seus sentimentos, com medo de se fragilizarem ou parecerem ridículos, conseguem resistir-lhe. Acontece que, o Amor também faz doer e excesso de amor faz doer ainda mais, principalmente, quando as ligações são fortes e criam dependência. Lídia sentia Amor pela Mãe, tanto, que nunca chegou a expressar-lhe o quanto a amava. Perdera demasiado tempo a medir forças com a Mãe, somente para que ela reconhecesse que não é o único elemento da família preparado para a Vida nem a única a saber aconselhar ou a ajuizar melhor. Lídia queria que a Mãe aceitasse a sua forma de lidar com as situações e a admirasse por isso. O que ela não sabia é que sempre foi admirada, elogiada e eleita como um exemplo a seguir e a sua Mãe só continuou a manifestar-se, com a sua experiência de Vida, por temer perder-lhe o rasto e deixar de lhe ser mais útil.

Acordei o mundo

Najla tinha muita dificuldade em dormir. No seu entender, a vida podia acabar se se deixasse adormecer. Uma convicção implantada, desde a m...