Já morri há alguns anos, bem longe do local onde nasci e pouco cresci. Não guardo saudades, só rancores e, talvez, por isso, não me quisessem ali, junto deles e próxima, de todos os outros que se achavam diferentes de mim. O meu interesse em regressar não era emocional, muito menos umbilical. Na verdade, eu só queria esquecer, mas para isso precisava beber.
A minha fonte de rendimento era a minha mãe, numa troca de favores, embrulhados em remorsos, ressentimentos, vergonha e compensações rasas, sem margem para perdões e absolvições.
Os homens não me queriam mais e os que me queriam eram esmurrados à saída. Lembravam-me o homem, que a minha mãe escolheu para ser meu pai.
O pesadelo de todas as noites.
Aquele homem, outrora, alto, robusto, olhar inexpressivo, com mãos de aço, rude e cheio de más intenções, tombou de dor e morreu desamparado. Gostava de ter estado presente e vê-lo, ali, suplicante, em agonia, impotente, frágil e só. Morreu jovem, mas demasiado tarde. Pelo menos, para mim.
Nasci e cresci num enquadramento, onde a violência, os abusos, o choro abafado, a negligência física e emocional, a conivência, a estigmatização, faziam parte do meu quotidiano.
Ninguém se queria aproximar de mim, com medo das minhas reações e eu, por sua vez, com medo das suas intenções.
Retiraram-me todas as oportunidades, mal tinha acabado de nascer e, o que se seguiu, foi um descarrilamento para o abismo.
A bebida era a minha anestesia para tudo e foi, também, a que me conduziu até aqui. Só queria esquecer, que nasci Almerinda, a condenada, da villa pasquim.
Adotei o nome Marisa, bem distante daquele que me calhou e me traz a lembrança do meu oposto. A menina com mais oportunidades na escola, com melhores notas, melhores pais, melhor família, melhores amigos, melhor casa, melhor futuro.
A falecida Almerinda e a Marisa eram os extremos opostos que se estranhavam, mas não se evitavam. A Marisa intrigava-se comigo e, eu, com ela. O meu jeito fechado, os meus maus modos, os meus andrajos, o meu isolamento, a minha fúria e vontade de aprender, despertaram-lhe curiosidade. Por sua vez, a sua graciosidade, inteligência, doçura, beleza cuidada, modos suaves, conquistaram meu coração inabitado.
As amigas improváveis que chocaram o universo escolar e provocavam mau estar nas amigas de berço, carregadas de afinidades.
Eu não pertencia ao mundo delas que, também, era o mundo da Marisa. Algo que, eu percebi desde muito cedo, quando tudo me foi negado.
Não havia lugar para mim.
A Marisa é o alter ego da Almerinda.
Uma mulher vistosa, atraente, provocadora, enigmática e perigosa. Na verdade, eu sentia-me uma justiceira implacável, invencível e poderosa.
Marquei todos os homens que compraram o meu amor pelo canal virtual.
Menos, um.
Aquele que, me fazia desligar deste mundo cruel foi poupado.
Antes de desaparecer, dopava-os até à inconsciência e marcava-os com um ferro em brasa, com as iniciais M&A, como se faz ao gado.
A minha identidade nunca foi revelada, para evitar perseguições e retaliações. Apesar de terem contratado a Marisa pelo canal Amor Sem Cerimónias, eu nunca existi e meu perfil foi apagado de todos os históricos. Desaparecia por uns tempos para mais tarde regressar, novamente, com o mesmo nome, numa outra área geográfica, num outro país, num outro estado, diante de outras vítimas, mas com o mesmo propósito.
Para mim eram todos iguais, com o mesmo padrão de comportamento, emocionalmente impotentes, sem carisma, brutalmente básicos e ingénuos.
Todos, menos um.
O visitante número 99, com o nome de um guerreiro viking, nacionalidade universal e perfume Valetino, distanciava-se do padrão habitual, o que fez ativar as minhas desconfianças militantes. A sua entrada harmoniosa, educada, empática e interesse em me conhecer, levantaram todas as suspeitas e red flags.
Ele adotou o nome de um guerreiro e eu vesti-lhe a armadura.
O facto de não querer despachar o assunto e procurar maior envolvência, quase me conquistou, num momento de distração meu. Por pouco, fui apanhada.
A recusa em conversar fê-lo recuar e abortar o ato, mesmo tendo pago e bem, por uma noite comigo.
Nunca me tinha acontecido!
Pensei que, nunca mais fosse regressar e forçar-me a concretizar suas bizarrias.
Voltou e disposto a conversar, na tentativa de me conhecer melhor.
Ativei minhas reservas, meus planos de emergência, em caso de ataque súbito e encarei a sua vontade de conversar, como uma fantasia paga de um homem solitário.
Não podia deixar que ele deixasse marcas em mim.
As visitas foram se tornando cada vez mais frequentes. O interesse era sempre o mesmo, relaxar, chillar, falar sobre o seu dia, seus likes, dislikes, sua infância, a morte dolorosa do seu cão viking, dormitar um pouco, tomar um duche e sair com um sorriso de agradecimento perfumado.
A sua presença era cada vez mais aguardada, a vontade de beber subitamente esfumou-se e a permanência naquele lugar tinha excedido o prazo habitual, muito por culpa do guerreiro viking e seu investimento de longa duração em mim. Por esta altura, já estaria longe a carimbar minhas iniciais M&A.
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