A Fava da Sorte
Boneca! É assim que o meu avô me costuma chamar.
Adora, ver-me agitada.
Está cansado de saber, que bonecas, são as criaturas mudas,
com as quais costumava brincar e que agora decoram a minha cama. Riza e Zafi.
As minhas irmãs mais novas, de plástico reciclado.
Meu Nome é Anita Soares Melo! – disse-lhe eu, em tom
altivo.
A tentar mostrar que sou muito adulta para a minha idade.
Desculpa, boneca Anita! – repetia ele, em tom
trocista.
Naquele instante e, sem querer, borrifei o vestido com os restos
das gargalhadas, que não consegui conter.
Só a avó Zinda, o conseguia fazer parar com aquela
cantiga repetida.
Jaime, deixa a menina em paz!
Aproveita e, vem ajudar-me, a tirar as casacas das favas. –
ordenou a avó, que em passo acelerado, nem aguardou pela resposta. Já sabia que
seus pedidos, eram sempre atendidos.
Tão adoráveis, aqueles dois
Sempre juntos e em sintonia.
Segui-os, sem que eles se apercebessem.
Olhem que, não é fácil acompanhar o passo da minha avó
Zinda.
Bate todos os recordes de velocidade.
Nunca se cansa.
Apesar de não ser tão rápida, tenho o ouvido bem apurado e
consegui escutar a avó dizer, em surdina, ao avô Jaime, que íamos
ter uma visita.
Eh pá, visitas! – exclamei eu baixinho, em tom
entusiasmado.
Será que as visitas gostam de favas? - Pensei eu.
Eu consigo sobreviver às favas, mas continuo sem as adorar.
Muito provavelmente, deve ser alguém que gosta muito de favas.
A avó faz sempre o prato favorito das visitas.
Não conheço ninguém da minha idade que goste de favas. Nem
o Romeu, o maior glutão da escola, as suporta.
Mas, quem será?
A Bina e o Tião estão para a França. Foram
visitar o neto recém-nascido.
Só regressam no final da primavera. A avó Zinda,
até se ofereceu para cuidar da horta deles, na sua ausência.
Eu bem digo. Não se cansa.
Pelo menos, já sei que não são os vizinhos dos avós.
Afinal, quem será a visita mistério?
Anita, podes chegar aqui? – pediu a avó.
Meu coração disparou. A avó não sabe reclamar a minha
presença. Ela só sabe ordenar. O que me deixou muito intrigada.
Dobrei os corredores estreitos, tropecei no caminho, levantei
sem dor e continuei, até chegar, finalmente à cozinha e ver a avó Zinda, para
meu espanto, sem avental, cabelo arranjado, vestida de azul céu,
saia e casaco a combinar, com os brincos de filigrana deixados pela biza
Bernardete e um sorriso de orelha a orelha. A seu lado, o avô Jaime,
no fato das ocasiões especiais, de lenço na mão, a enxaguar as lágrimas, que lhe
escorriam pela cara sorridente.
Onde vão sem mim? – perguntei eu, em tom curioso.
Hoje nem é dia de missa? – pensei eu.
Vamos! – decidiu o avô Jaime, todo catita.
E a visita? – disse eu, interrogativamente.
Nem fizeram caso da minha curiosidade. A avó Zinda, apressou-se
a vestir-me o vestido dos ananases. Arrastou as franjas do meu cabelo para
trás, sacudiu o meu vestido para não ganhar rugas e num puxão, tirou-me dali e
me levou junto.
Enquanto isso, o avô Jaime tenta acompanhar nosso
ritmo.
Lá em baixo, o Sr. Gaspar aguarda, encostado ao seu
imaculado táxi, preto e verde.
Eu e a avó ocupamos os lugares de trás, enquanto o avô Jaime,
juntou-se ao Sr. Gaspar, numa animada conversa sobre futebol.
As nossas mãos continuavam grudadas e eu ansiosa por saber
que mistério é este.
A avó pede ao Sr. Gaspar para abrandar e
indica-lhe onde tem de parar.
Ao longe, vejo um cartaz onde se lê Apresentação do
livro de receitas caseiras da avó Zinda, na livraria Bairro, esta quinta-feira
pelas 17h.
Olhei para a avó, ela olhou para mim e um abraço foi o
tanto que conseguimos dizer uma à outra. Fiquei tão, mas tão feliz, que
precisei do lenço do avô para secar a emoção no rosto.
No fim, todos aplaudiram e quiseram saber mais detalhes e
truques para as receitas resultarem tão perfeitas e saborosas. Não largavam a
minha avó, com perguntas e mais perguntas. Se não fosse a Doutora Rute a
dar uma ajudinha, não sairíamos dali tão cedo.
Eu e o avô Jaime assistíamos a tudo com muito
encanto.
De regresso, estava o Sr. Gaspar para nos dar boleia
de volta a casa. Só que em vez de três passageiros, desta vez, eramos quatro. Afinal,
a Doutora Rute, é a tal visita especial.
Não me contive e aproveitei a ocasião para perguntar - A Doutora
gosta de favas?
Gargalhada geral. E eu, sem nada perceber.
Sim, adoro. É um dos meus feijões favoritos – diz ela, satisfazendo
a minha curiosidade.
Chegados a casa, a avó tratou de ir preparar o jantar, o
avô regar o jardim, enquanto eu e a Doutora Rute, ganhávamos amizade.
Quis saber tudo. Como é que a avó a conheceu e como isso
levou à publicação do livro de receitas.
Fiquei a saber que a culpa é das favas.
Tudo aconteceu, no ano passado, quando o avô Jaime
foi operado e, todos os dias, a avó ia dar-lhe o almoço e, já se sabe, a comida
do hospital apesar de não ser má, não tem aquele gostinho de casa.
Certo dia, encontrou-o adormecido e já com o almoço comido.
Tinha chegado um pouco mais tarde. As obras na rua do Império fizeram-na
atrasar-se. Bem insistiu com o Sr. Gaspar para furar a fila de trânsito,
mas ele não quis arriscar comprometer a segurança de ambos e prejudicar os outros
automobilistas, que aguardavam na fila.
Na cama ao lado, estava o Sr. Pepe e junto a ele, a
sua filha Rute, que tal como a avó, não falhava uma visita. Vendo-a
esbaforida de saco na mão, a tentar recuperar fôlego, prestou-se a ajudar. A
simpatia da jovem mulher conquistou a minha avó que, sem hesitar, lhe estendeu
o arroz de favas, ainda quente, para ambos provarem. Rute nem teve
hipótese de rejeitar. Quando o ia a fazer, já ela tinha colocado num prato meia
dose de arroz. Minha avó é um despacho.
Vai ver que, o meu tempero tem efeitos curativos – gracejou
a avó.
Não estava muito longe da verdade. Dois dias depois, o Sr.
Pepe e o avô Jaime tiveram alta hospitalar e regressaram a casa.
Certo é que, as favas da minha avó devem ser mágicas.
Aproximaram-nas e ajudaram a mostrar o dom da minha avó.
Agora percebi que, a Rute, afinal é a Doutora Rute,
responsável pela publicação do livro de receitas da minha avó Zinda.
Na ocasião, pensou que ia apenas ensinar a receita das
favas às amigas da Doutora Rute. Só que, a ideia ganhou outra dimensão.
Enquanto eu estava na escola, Rute foi lá casa,
inúmeras vezes, falar com a avó Zinda, para reescrever as
receitas que ela apenas sabia de memória, filmar um vídeo, com a nossa cozinha
como pano de fundo e a avó como protagonista, mostrar-lhe o passo a passo da
edição do livro, entre outras afinações. E, eu, sem nada saber.
A conversa estava tão descontraída e fluida, que até
esqueci, de ajudar a pôr a mesa para o jantar. O Avô Jaime, fê-lo por mim.
Para a mesa! – ordena a avó, com a terrina de arroz
fumegante nas mãos.
Só eu insistia em tratá-la por Rute, apesar da avó
não gostar muito e me lançar uns olhares de reprovação.
Para ela, Rute será sempre a Doutora Rute. Somente, porque tem mais estudos que todos nós.
Mal provei o arroz de favas. Estava tão curiosa em
participar da conversa, que nem sentia fome.
Vá, Anita, deixa a Doutora Rute comer à
vontade – reagiu a avó, em modo impaciente.
Obedeci e desculpei-me. Afinal, eu estava a desviar as
atenções dela. Até parecia que, a Doutora Rute era a homenageada.
A avó não estava importada com isso. O que a preocupava era
a quantidade de arroz por comer e o arrefecimento da comida.
Palavras, não enchem barriga! - rematou a avó
Na despedida, Rute deixou duas caixas de exemplares
para distribuir por familiares e amigos.
A avó reservou alguns, para oferecer às amigas e vizinhas.
Os restantes, ficaram para mim.
Não perdi tempo e tratei logo de pedir ao avô Jaime
que me ajudasse a levar os exemplares para a escola no dia seguinte.
No intervalo, falei com a Professora Benedita, que me
deu autorização para os distribuir pelas turmas todas.
O Romeu implicou com a receita de favas.
Ughh!!!! – manifestou com desagrado.
Felizmente, nem todos estavam de acordo e o livro é
composto por cem receitas.
Vai à página noventa e cinco. Encontras receitas de
sobremesas com chocolate fixes, que te vão agradar – disse-lhe eu, na tentativa
de o desviar da imagem das favas.
O intervalo foi curto, para ouvir todas as reações. Porém, deu
para perceber que a maioria delas, senão todas, foram positivas. Excluí a do
Romeu. Não se pode dizer que foi uma reação negativa. Nem todos podemos gostar
de arroz de favas, nem essa é a única especialidade da minha avó.
A receita de favas foi o mote do livro, isto porque, foi
através delas que a Doutora Rute e a minha avó se conheceram. Algo que, não se pode ignorar.
No meu caso, adoro tudo o que a minha avó faz. Tem cheiro e
sabor de amor.
Já me quiseram até roubar o lanche.
Uma mordidela bem marcada na mão invasora do Mauro,
custou-me dois castigos. Um na escola, outro em casa.
Pelo menos, ficou a saber que da próxima terá de pedir. É
feio pegar no que é dos outros à força. Mas disso, nem a minha avó, nem a
direção da escola, quiseram saber. Aplicaram-me na mesma o castigo.
O avô Jaime, ainda tentou que eu não fosse castigada,
mas de nada adiantou.
Durante um mês, não pude ver, nem tratar da minha Dizzy.
Dizzy é a ovelha bebé, que eu adotei e me acompanha
para todo o lado. Nesses dias que estive ausente, ela sentiu muito a minha
falta. Cheguei a culpar a minha avó, pelo estado da bichinha. Chorei baba e
ranho. Deixei de comer. Isso, afligiu-a. Chegou a fazer a minha sobremesa
favorita, com a intenção de me alegrar. Nem assim, me alegrou.
A Avó Zinda, às vezes, consegue ser brava, mas não
deixa de ser a Melhor avó do Mundo.
Mal terminou o castigo, voltou a fazer a sobremesa que eu
mais adoro e, aí sim, devorei tudo. Até a Dizzy gostou.
Que alívio deve ter sido para a avó, ver-me novamente com
apetite.
Para ela, fastio é doença.
Chegou a medir-me a febre. Suspeitou que estivesse a chocar
uma gripe.
Era mesmo tristeza, por não cuidar da minha lãzuda Dizzy.
A Professora Benedita estranhou a minha apatia e
chegou a perguntar-me se estava doente.
Estranhamente, o Mauro também veio pedir-me
desculpas e oferecer-me um rebuçado de morango. Aceitei as desculpas e rejeitei
a oferta.
Ele, pareceu entender.
Felizmente, os dias menos bons deram lugar a dias melhores.
A Primavera está a chegar e com ela o meu décimo
aniversário. A Rute prometeu fazer-me uma visita.
As minhas amigas andam intrigadas com a Rute. Só
falo bem dela.
Terão oportunidade de a conhecer na minha festa de anos.
Anita, já fizeste os deveres? – interrompe a avó.
Seus poderes de adivinhação são mágicos.
Perdi-me a rever os acontecimentos mais recentes e esqueci de fazer a composição sobre o Meio Ambiente.
Se calhar vou falar da minha mé mé e da importância
da preservação do ecossistema, para que os animais como a Dizzy, continuem
vivos e haja equilíbrio ambiental.
Devo agradecer ao meu tio Rui, este amor pelos animais
e pela natureza. De acordo com as suas palavras, ambos resultam numa harmonia que
devemos estimar.
O Tio Rui não é visita regular cá em casa, mas
quando cá vem, a avó rejubila de felicidade e seu humor melhora muito.
É, sem dúvida, uma presença especial.
Estes dias, disse que ia regressar de vez. Fez-me prometer
que não contaria nada à avó. Seria uma surpresa.
Por pouco deitei tudo a perder. Consegui abafar a tempo o guincho
de felicidade e impedir que a avó desconfiasse.
Ela não vai caber de contente.
Tenho esperança, que ele esteja presente na minha festa de
anos. A família é pequena e a ausência de um de nós faz a diferença.
Meus papás só estão comigo aos finais de semana. Quer
dizer, falamo-nos todos os dias via zoom, mas é no final de semana que
convivemos juntos. O trabalho, aqui na aldeia, não abunda e um dia, eu também vou
ter que abalar. Não sei se conseguirei me afastar da Dizzy.
Nem quero pensar nisso. Entristece-me.
O meu aniversário está a chegar.
As férias de Verão estão a caminho.
A tão aguardada semana no campo de férias com os amigos da
escola, vai acontecer.
Os passeios e piqueniques com a família junta, fazem parte
do programa das férias.
Este ano, sou finalista.
A Professora Benedita comentou na sala de aula que,
estão a preparar uma festa para os finalistas, com muitas surpresas.
Ainda nem me despedi dos amigos e da escola e já sinto, uma
ligeira saudade do que vivemos aqui.
Vai ser um dia de muitas emoções.
No próximo ano, a minha escola será outra.
Será bem maior e com mais alunos.
Espero não precisar de mapa, para me orientar dentro da
escola.
É muita ansiedade, pensar em tudo aquilo que está para
acontecer, em breve.
A campainha soou e o nosso cão Nixa acordou em
sobressalto. Era o carteiro. Olhei pela
janela do quarto e vi a avó com uma encomenda na mão. Desci as escadas a correr,
curiosa. Até o Nixa teve que se desviar, num instinto.
- Vó, para quem é essa encomenda? – quis saber, sem
disfarçar toda a minha curiosidade.
Abre, é para ti! – responde a avó, com satisfação.
Para mim? Hoje, nem sequer é o meu aniversário - disse eu, enquanto tentava abrir a caixa de cartão.
A avó parecia impaciente.
Finalmente, consegui abrir e vislumbrei uma gola gigantesca.
Logo ali, percebi que o dia da comunhão ia acontecer, mesmo sem fazer tanta
questão assim.
A avó nem me deixou ver o vestido com pormenor. Enfiou-mo
na cabeça e estendeu-o até aos meus pés e ainda, afinou a minha cintura com o
cinto de cetim, a apertar-me a barriga. Mal conseguia respirar.
A seguir, ia ser a prova dos sapatos. A maldição para os
meus pés.
E por fim, as tranças no cabelo.
O horror!
O seu entusiasmo, por me ver assim e, principalmente, por
saber que ia dar continuidade aos princípios cristãos da nossa família, serenaram
a minha insatisfação.
O Amor, por ela e pelo avô, valem todos os sacrifícios.
O Padre Alécio já está velhinho e, por vezes,
adormece nas leituras do evangelho. Numa das missas, chegou a ressonar. A
gargalhada geral fê-lo acordar.
O avô Jaime foge, sempre que pode, à missa de
domingo. A avó até já deixou de insistir.
A mim, já me basta a catequese aos sábados de manhã e agora,
a preparação para a comunhão solene.
Desembaracei-me do vestido e dos sapatos e fui apanhar sol
para o alpendre, enquanto a avó preparava o almoço. Já lá estava o avô, a
descascar as favas. Ofereci-me para ajudar. Minhas mãos sempre são mais
ágeis.
Entretanto, fomos almoçar. A Avó chamou para a mesa.
Até o Nixa e a Dizzy se queriam juntar, mas foi-lhes barrada a
passagem.
O almoço foi rápido.
A mãe da Rita estava à minha espera, para nos levar à escola.
A Professora Benedita pediu ajuda, para os
preparativos da festa de finalistas. Nem pensei se contaria para a nota final.
Só queria ajudar.
Quando chegamos, encontrámo-la junto a uma pilha de livros
novos e de caneta na mão.
Assim que me avistou, chamou-me à parte e pediu que me
sentasse na secretária em frente e aguardasse um pouco.
Ainda tentei desviar o olhar e fingir não estar interessada,
mas parecia um desafio impossível.
Treinei a minha paciência, fazendo contas de cabeça e foi, nesse
instante, que ela se abeirou de mim e me estendeu um livro dourado com letras
pretas e lombada quadrada.
Afinal, tinha vindo para ajudar ou para treinar a leitura?
É para ti, Anita – disse ela, gentilmente.
Corei de felicidade.
A minha curiosidade fez quebrar todas as regras da boa educação e
num impulso, peguei no livro. Na capa lia-se a Princesa Descalça.
Dentro, tinha uma dedicatória.
Dizia, "Queria Anita, escolhi este livro,
propositadamente, para ti. Fala de uma menina princesa, muito parecida contigo.
Princesa, na bondade, na amabilidade, nos bons modos, na beleza. Descalça, em
representação do teu movimento e pensamento livre. Tão característicos da tua
personalidade.
Tenho a certeza, que serás um orgulho para a tua Família e
para mim, que tive a felicidade de te conhecer.
Sempre que quiseres podes vir visitar-me.
Tens os meus contatos, para irmos conversando.
Tens em ti todos os sonhos do Mundo".
Levei a mão ao bolso das calças, à procura do lenço. Quis impedir
que as lágrimas caíssem em cima do livro novo. Em vez disso, senti algo redondo
e espalmado e, para minha surpresa, descobri ser a fava que esquecera, no bolso das
calças. Decidi guardá-la porque me pareceu tão diferente das outras. Encantei-me por
ela e agora, vou adotá-la como a minha fava da sorte. Seus efeitos são especiais.