domingo, 4 de agosto de 2013

Boas Surpresas


 
Acordei ao som de gargalhadas estridentes, que ecoavam em toda a casa e fizeram estremecer o meu gato persa “centelha”, que aborrecido se esgueirou para o jardim.
Na verdade, aquelas risadas eram me familiares mas, o despertar retumbante atordoou de tal forma o meu pensamento, que este demorou a reestabelecer-se. Precisei de alguns minutos para descobrir o culpado, por aniquilar a tranquilidade do meu sono, mas até que não foi difícil achá-lo. Só podia ser o Vicente e sua espaçosa e generosa forma de ser, que a todos conquista e eu, então, que o diga. Fui impiedosamente arrebatada pela sua envolvência magnetizante. Até hoje, ainda não parou de me surpreender com suas atitudes inesperadas de uma sensibilidade invulgar.
Aliás, nosso primeiro encontro foi no mínimo caricato, porém inesquecível. Estava eu a recuperar de uma cirurgia à tiróide, ainda sob observações médicas e sem data prevista para abandonar a enfermaria, quando sou abordada por um fulano de olhar castiço, em roupão e chinelos a condizer e, sem sinais visíveis de enfermidade. Nem parecia pertencer aquele local.
Da forma como estava vestido associei que, tal como eu, deveria ser inquilino temporário do hospital. Porém, seu contentamento despropositado, levou-me a suspeitar que tivesse fugido da ala psiquiátrica e aterrado na normalidade dos meus aposentos. São inúmeros os quartos de um hospital, mas sem qualquer razão aparente que o justificasse, foi justamente aterrar no meu e atormentar meu sossego. Logo eu, que prezo tanto a minha sanidade mental e evito conviver com a loucura dos outros para não vir a ser contagiada e perder o meu equilíbrio. Tentei não mostrar-me intimidada com sua presença e procurei reagir com normalidade mas, sem prolongar muito o diálogo, para não fomentar nenhum tipo de empatia. Esse era o meu objectivo. Eu digo era, porque se revelou totalmente o contrário.
Não tardou a apresentar-se e tentar ganhar proximidade. Iniciei automaticamente um processo de desconfiança e, para me defender de um possível ataque tresloucado, agarrei o botão de emergência e esperei que a ocasião surgisse. Seus modos educados, sua simpatia e amabilidade amorteceram o meu instinto de defesa, que deixou de estar alerta e fez soltar, sem esforço, o botão de socorro. Algo o tinha atraído aquele local e algo me atraiu nele e me fez acreditar que podia confiar. Certamente, a convalescença deixou-me mais carente e sôfrega de afectos.
Vicente, tal como eu estava hospitalizado e a recuperar bem, de uma operação na coluna. Anos e anos de más posturas, intensa actividade física, excessos de carga. Não que eu tivesse perguntado ou sequer presumido, esta foi a explicação, que ele mesmo, fez questão de revelar e que explicam o seu internamento. Se bem que não me admirou, quando apontou como uma das causas actividade física frequente e excessiva, a julgar pelo seu físico bem torneado, de fazer corar o seu antepassado Adónis. Se quisesse, já teria sacado o acesso à sua conta bancária, tal era a sua permeabilidade e vontade de se expor.
A julgar pelos dedos nus e sem marcas, não é comprometido mas quantas já não foram enganadas pelas aparências e conclusões precipitadas como esta. Prefiro continuar a guardar reservas.
Continuava sem saber o que o tinha atraído até ali e apesar de me achar uma pessoa frontal e sem rodeios, estranhamente, aguardava os próximos desenvolvimentos com expectância.
Finalmente, resolveu desvendar o mistério e acabar com o suspense.
A razão da sua intrusão deixou-me perplexa e ao mesmo tempo enternecida com a sensibilidade demonstrada.
O meu quarto, sem que eu me apercebesse, tinha vista para a praia e sua marginal iluminada, sempre movimentada por casais apaixonados, praticantes incansáveis de jogging, crianças endiabradas, astutos comerciantes, turistas incautos, entre outros. Vicente queria apenas sentir o palpitar da vida no exterior e assistir à mobilidade das pessoas no seu dia-a-dia. Sentia-se engaiolado e impedido de fazer o que mais gosta. Nunca tinha permanecido tanto tempo fechado e estava a detestar a sensação. Já não era muito do seu agrado, apesar de o fazer por consideração, visitar amigos e familiares hospitalizados. Sempre que era obrigado a isso, ausentava-se várias vezes com o pretexto do famigerado vício do tabaco.
Senti que as longas conversas que tivemos o acalmavam e o faziam esquecer desse lugar sinistro que é o hospital, sua mais recente morada temporária.
Foi nesse clima de cumplicidade que partilhamos a mesma janela e usufruímos demoradamente da companhia um do outro com a conivência do staff da enfermaria, que se rendeu à nossa vontade de estarmos juntos.
Naturalmente, criamos uma forte Amizade que se transformou numa crescente relação de Amor que tudo supera, até mesmo gargalhadas sonoras a consumir o meu sono e a fomentar a minha curiosidade. Apesar de tudo, deixei-me estar, sentia-me demasiado cansada para desperdiçar minhas energias com uma anedota ou piada qualquer, além disso, iria precisar de ter mais motivos para me rir de manhã, antes mesmo de encarar uma jornada de trabalho. Por isso, preferi questionar, no dia seguinte, a razão de todo aquele alvoroço nocturno.
Vim a saber que as explosões de riso foram provocadas pela seguinte mensagem, deixada pelo nosso filho Tiago de apenas sete anos:

“Pai e Mãe, a partir de hoje e para sempre, evitem beijos e recados prolongados à porta da escola. Eu sei que vocês me amam. Deixem-me crescer. Os beijos fazem-me encolher e os recados fazem-me chegar atrasado às aulas. Também vos Amo. Respeitem, por favor, meu pedido.
O Vosso Filho Tiago”.

Por fim, eramos dois pais comovidos por ter gerado um filho tão maravilhoso.
Valeu a pena ter esperado pelo dia seguinte e amanhecer com este dado novo. Nosso filho está a crescer e nós vamos ter que conviver com isso e resignarmo-nos às evidências.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Acordei o mundo

Najla tinha muita dificuldade em dormir. No seu entender, a vida podia acabar se se deixasse adormecer. Uma convicção implantada, desde a m...