terça-feira, 16 de abril de 2024

Colonos do Algarve

Ainda sem idade para entrar no segundo ciclo e, meus pais, já arriscavam ir conosco para o Algarve. Recorde-se que, há quarenta e quatro anos atrás, não havia tantas auto estradas, nem trajetos fáceis, muito menos, trajetos rápidos e anti vómito. Muitas vezes, fomos sujeitos ao para arranca e sempre que éramos obrigados a parar, as sombras encolhiam diante do imenso astro quente. Corados de sol e transpirados de irritação, acusávamos impaciência ao cubo. Não havia sono que nos pegasse. Entretanto, meus pais tentavam não descarregar tudo em nós. Cada vez mais inquietos e endiabrados, vomitávamos estrada pelos olhos e os pedidos constantes para fazer xixi, era a forma de escaparmos aos encostos suados, porém, já tínhamos esgotado todas as vidas e, já sem margens de tolerância, minha mãe reage e distribui, em modo automático, safanões nas nossas pernas, apesar de, se o quisesse, estar capaz de alcançar as nossas orelhas. Seu braço, subitamente, parecia uma viga com propriedades elásticas e flexíveis extraordinárias. 
O remédio não foi santo, eu diria que, foi certeiro e nos pôs a dormir com um só knockout, o  resto do caminho. Quando acordássemos, nem saberíamos o que nos tinha acontecido.
Finalmente chegávamos, famintos, pegajosos, estremunhados e de sacas na mão, percorríamos o jardim do aldeamento, à procura de sinais de diversão, presenças amigáveis e simpáticas, que queiram brincar conosco e tornar as férias de verão memoráveis.
Nós agíamos como hóspedes convidados.
Nem as quedas de bicicleta tatuadas no corpo nos faziam abrandar. Da bicicleta, pulávamos para as raquetes de praia, das raquetes de praia, para os saltos e mergulhos para a piscina e nem os warnings do vigilante, que ameaçava interditar a nossa entrada no recinto, nos fez estremecer.
Os últimos a abandonar o recinto éramos nós, mirrados e cansados de felicidade.
Minha mãe bem tentou ler "A falha dos deuses" de Zenita Bladin, mas não passou do prefácio. Para ela nunca foram férias. 
Enquanto o nosso pai jazia na espreguiçadeira e demitia-se de todos os seus papéis. em compensação, a nossa mãe vivia em sobressalto, sem saber onde estávamos, o que estávamos a fazer, preocupada com a insolação, a indigestão, a alimentação, os banhos, as mudas de roupa, o sono, a bexiga cheia e a precisar esvaziar.
No ano seguinte e sem que nenhum de nós suspeitasse, voltavam a marcar férias nas praias do sul e a sujeitarem-se, novamente, às cargas do costume.
A minha mãe jurava que seria a última vez que iria de férias conosco para o Algarve e desfiava suas razões, enquanto nós, engolíamos a culpa, em silêncio.
Até o meu pai respeitava aquele momento, só dela.
Sabíamos que ia passar, só tínhamos que lhe dar tempo, até se recordar das nossas risadas à mesa, dos nossos mimos e abraços, do nosso cheirinho suave após o banho, das nossas piadas inocentes, dos colinhos de sono, das corridas na sua direção para mostrar todas as proezas que somos capazes de fazer, do nosso apetite voraz e do nosso despertar sem contrariações.
Com o tempo nossos pais foram ficando cada vez mais óbvios e mais importantes.

 


       
 

 

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