terça-feira, 19 de julho de 2011

Sucumbir à Dor


A Luz apagou-se, o coração acusou batimentos cardíacos cada vez mais fracos e acabou por decretar falência, os sentidos desligaram-se. O sangue deixou de se espalhar e bombear as artérias, o corpo arrefeceu e rapidamente virou alimento de larvas, que atraídas pelo seu intenso odor, formaram uma gigantesca legião desordenada e faminta.
Sua alma levitou como uma sonda no espaço e sem deixar rasto partiu, deixando apenas a consolação de ter partido em paz.
Inconsoláveis, estavam as figuras vestidas de negro, que sem desgrudar, velavam o corpo, empregando ainda mais profundidade ao momento fúnebre. Quanto mais consumidos pela tristeza melhor. Mais tarde serão recordados como os mais afectados com a perda, que o tempo se encarregará de esbater.
Frases consoladoras saídas de um qualquer manual de boas maneiras rebentam com a nossa dor, porque teimam em querer apagá-la.
É uma batalha perdida e inútil. Para quê remediar o irremediável, com palavras de apoio que só sabem interromper nossa necessidade de privacidade. Nada disso nos alivia, nem é nosso propósito aliviarmo-nos. Afinal a dor é a única demonstração de Amor que nos resta e, por isso, não procuramos conforto nessa onda repetitiva de condolências gentis.
Não nos queremos despedir. Não queremos atirar para o passado o que previmos ter no futuro. Não nos queremos libertar da dor, ela prende-nos áquilo que recusamos abandonar apesar de nos ter sido retirado. O facto é que sabemos que a partida daqueles que mais amamos e veneramos, não impede o nosso percurso de Vida e essa evidência deprime-nos ainda mais. O pior é que ultrapassá-lo não resultará fácil enquanto as recordações recentes não se desvanecerem mas, com a passagem do tempo não restarão mais motivos para reviver o que não se pode recuperar e tudo aquilo que foi importante se evaporará.
Queremos impedir a passagem do tempo e comandar o nosso pensamento para aquele ou aqueles momentos em que fomos tão felizes e cúmplices. Queremos continuar a ser dignos do Amor dos ausentes e ficar suspensos por um sinal da sua omnipresença, que ditará a continuidade do nosso amanhã numa busca incessante por algo que nos aproxime deles.
Algo mudou e é essa impermanência que nos assusta. Aquilo que não podemos controlar coloca-nos numa posição muito vulnerável, sacrificando a nossa resistência à dor.
O sofrimento não honra os ausentes nem os faz ressuscitar. Viver Felizes é o melhor tributo que lhes podemos prestar porque foi assim que eles nos fizeram sentir e continuariam a fazer sentir. É nossa missão retomar esse ciclo de felicidade.

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Pensamentos Soltos


1. Ideais não há.

2. Pessoas ideais também não.

3. Ser Feliz é uma escolha.

4. Justiça demorada perde eficácia.

5. Sonho nem sempre vira realidade mas, pode aproximar-se.

6. Amar nem sempre faz bem mas, não Amar faz pior.

7. Desistir atribui razões aos outros e retira-nos autonomia.

8. Acreditar alivia-nos do peso da realidade.

9. O Medo é um mecanismo de defesa que nos impede de viver plenamente.

10. Tolerar não implica aceitar mas, admitir que nem tudo pode ser mudado.

11. Amarmo-nos com base no que os outros pensam é doentio.

12. Quanto mais complicado mais interessante.

13. Normas existem para dosear a nossa liberdade.

14. Recaídas são fraquezas de quem não se sabe amar.

15. Solidão maior sente aquele que não se aceita e se acha diferente.

16. Dúvidas são atalhos para chegar à Verdade.

17. Envelhecer é um processo ingrato. Quando finalmente nos tornamos mais sábios para encarar a Vida, impedem-nos de Viver.

18. Crescer faz doer.

19. Vontade promove dinâmicas que desencadeiam acções, que por sua vez produzem resultados.

20. Cantar bem espanta Todos os Males.

21. Cantar mal espanta Todos os Males e também a freguesia.

22. Viver sem ânimo rouba-nos qualidade de Vida.

23. Perder vira derrota quando nos deixamos afectar e o encaramos como uma facada no nosso ego.

24. Orgulho benigno é a defesa do que é Bom e sagrado em nós.

25. Orgulho maligno é a defesa de tudo aquilo que é Bom e Mau em nós e não abdicamos de o sujeitar aos outros.

26. Perder ou falhar são aproximações à perfeição.

27. Tentação é o desejo suprimido.

28. Beleza sem conteúdo agrada mas não convence.

29. Serenidade é o estado de quem aprendeu a não guardar a dor.

30. Saudade é o alerta para as nossas dependências afectivas.

31. Humor é a camada fina onde se alojam as emoções.

32. Riso e choro são duas expulsões emocionais antagónicas mas, altamente libertadoras.

33. Amizade sem dedicação perde eficácia.

34. Culpar os outros pelo que não souberam ser ou não puderam ser, não nos isenta de responsabilidades para com aquilo que provocamos.

35. Indiferença é o castigo dos nossos inimigos.

36. Vingança é o tributo aos nossos inimigos.

37. A Esperança recupera o que julgavamos perdido.

38. O silêncio aprofunda o que ficou por dizer.

39. Doçura é candura.

40. Tudo e nada expressam muita coisa.

41. Inteligência conjugada com esforço traz mais proveitos.

42. Sorria mesmo sem motivo, não tardará a saber porquê.

Mente Insondável



Baldwin apresenta-se ao grupo de profissionais em saúde mental do Instituto Lonliness, isolado na periferia de Londres e longe do epicentro cosmopolita londrino.
Sorridente mas, sem se deslumbrar com a recepção que o aguardava, impaciente por aplicar a sua implacabilidade clínica, suspira baixinho e enfrenta o veredicto do júri. Antes disso, dedicou-lhes umas breves palavras em sua defesa, tentando atenuar a sentença. Sua habilidade para comunicar e convencer, confirmavam a sua inteligência persuasiva. Impressionante é a forma como ele cria emoções que desconhece, de uma forma tão real e verosímil. Baldwin Spencer escapou do internamento prolongado e do isolamento, naquele espaço frio e decrépito, com cheiro a morte lenta.
Agradeceu a confiança na sua regeneração e despediu-se das criaturas ingénuas que o absolveram da sua loucura. Cada vez mais confiante no seu poder de camuflar evidências, retira-se vitorioso e mentalmente enfermo. Despistara todos os exames psicológicos e a perícia técnica.
O Tribunal determinou à cinco anos atrás a sua inimputabilidade e, por sugestão de um advogado de defesa astuto e bem pago, decretou o internamento de Baldwin na casa mental do condado de Yorkshire. Juntamente com seu defensor, encenaram o seu distúrbio mental e enfatizaram o seu registo criminal limpo e sem mácula, como prova de um desvario sem premeditações.
Isolado numa cela exígua, desprovida de alma, parca em conforto, funesta, acolhimento do silêncio absoluto, programada para acalmar os distúrbios da demência, não se deixa abater. Nos cinco anos de clausura, não só não aprendeu a mudar o seu comportamento como, não reconheceu o erro, nem mostrou arrependimento. Apenas fingiu.
A má decisão judicial podia ter resultado em amarga tragédia. Desta vez, Baldwin quiz ir mais longe na sua empreitada de malvadez. Estavamos perante um racista sexual. A raça feminina constituia uma raça a exterminar, num sopro só. Conhecia bem seu modus operandi. Primeiro seduzem com seu olhar, que se esquiva, cada vez que se cruza com o do seu alvo, demonstrando interesse para depois os descartarem quando suas emoções estão em brasa. São todas iguais.
Todas elas foram concebidas para maltratar. Queria acabar com o poderio feminino. Por onde recomeçar?
A vizinha Rose fora sua primeira vítima. Pagara as consequências da sua intromissão, que incomodou Baldwin. Não gostou das suas tentativas de aproximação e seus ensejos para o agradar. Desconfiou da sua bondade feminina, quando ela desviou o olhar e percebeu seu desconforto. Atraiu-a para dentro da sua casa com o pretexto de lhe agradecer a amabilidade com que o recebeu no condomínio. Após visita guiada ao seu cómodo apartamento, encaminhou-a para a varanda, com a promessa de uma vista da cidade digna de um postal.
Impressionada com a paisagem detém-se junto ao gradeamento de protecção e a pedido de Baldwin, confirma a chegada da chuva, estendendo a mão para o infinito. Desprotegida, balança e cai desamparada na calçada. Morte imediata. Baldwin finge preocupação e corre em seu socorro. Gritou por ajuda que não tardou em chegar e confirmar o óbito.
Essa foi a primeira experiência activa com a morte.
Sentiu prazer em desembaraçar-se da curiosidade daquela mulher desocupada e cansada da sua viuvez precoce.
A sua libertação permitia-lhe repetir a proeza, fazendo outras vítimas. Não faltariam nomeadas. Elas proliferam por toda a parte.
Apesar de ter sido absolvido, havia populares que não acreditavam na sua inocência e a permanência naquele lugar, onde tudo aconteceu, o colocaria sob suspeita. Partiu sem remorso para outras paragens, virgens em acontecimentos criminais relevantes.
A pequena cidade gaulesa de Sens foi a escolhida. Simpática e pitoresca, só podia ser albergue de Mulheres cheias de disposição em receber um turista rendido à novidade.
A estalagem Bonne Nuit acolheu-o num quarto single, com vista para a praça, ponto de atracção turística de Sens. Era perfeita para se perder na obscuridão da sua mente perturbada, que contrasta com a prezada calma daquele lugar, que privilegia o espiríto de comunidade e interacção social.
Baldwin nunca se quiz integrar em grupos, que sufocassem a sua liberdade e estranha individualidade. Orgulhava-se do seu estado de outsider porque o libertava da envolvência social e comunitária, dos afectos, das retribuições, da igualdade, das desilusões, da fraqueza humana. Dela aproveitava-se para cometer as suas atrocidades e defender a sua raça superior. Seus alvos eram as Mulheres carentes, marcadas pela rejeição, inseguras e emocionalmente instáveis. Aproximava-se com grande tacto para lhes apalpar o pulso e ganhar a sua confiança, garantia do seu domínio total e do prazer de as ver sucumbir a seus pés, implorando por clemência. Excitava-o vê-las a rastejar por misericórdia.
O esquema de conquista tornou-se num padrão e imagem de marca do seu modelo de actuação.
Valerie foi o próximo alvo de Baldwin. Mulher sociável, sobretudo com o sexo oposto, com o qual se deixava encantar facilmente e se, no caso, fossem forasteiros então maior era o seu deleite. Pobre Valerie. Caiu nas malhas apertadas de Baldwin que, não se permitia falhar.
Após ter sacrificado o seu corpo para dar prazer a Valerie, era a sua vez de ser compensado. Aguardou pacientemente que Valerie se entregasse ao sono, para imprimir sua força bruta com a ajuda da almofada, que a despertaria para a Morte.
Quando se preparava para agir foi surpreendido com a entrada brusca de dois agentes da Scotland Yard, que o impediram de satisfazer sua vontade mórbida. Valerie acordou sobressaltada e assustada com a intrusão. Mais surpreso ficou Baldwin com a visita inesperada e em sua defesa, tentou argumentar com a sua habilidade habitual para convencer, mas foi em vão. Os agentes conheciam bem as suas manhas, suas obssessões, seus ímpetos de malvadez. Sem saber, Baldwin tinha sido vigiado desde que abandonou Londres e um passado no minímo intrigante.

domingo, 10 de julho de 2011

I Like

Gosto de gente simpática e sobretudo educada
Gosto de silêncio mas não muito
Gosto de esplanadas de Verão e de Inverno
Gosto de apreciar, sem ser notada
Gosto de gente que ousa quebrar com o conformismo
Gosto das manhãs livres
Gosto de pessoas, com as quais posso aprender algo
Gosto de pessoas autênticas
Gosto de uma boa conversa
Gosto de música ambiente
Gosto de pessoas com opinião
Gosto de desabafar o que sinto
Gosto de ser ouvida
Gosto de estar perto de pessoas que melhoram a minha disposição
Gosto de aprofundar
Gosto de me prender a um bom livro
Gosto de ver pessoas bonitas e que gostam de se cuidar
Gosto do cheiro intenso a café
Gosto de Chocolate
Gosto de boas sugestões
Gosto que me entendam
Gosto de me expressar
Gosto da diferença
Gosto de me inspirar num bom filme
Gosto de mentes abertas
Gosto de sacar a alguém uma boa gargalhada
Gosto que as pessoas se sintam acolhidas na minha presença
Gosto da liberdade para decidir sem pressões
Gosto que me saibam valorizar
Gosto de me emocionar
Gosto de ver Famílias Unidas
Gosto de ser um bom exemplo
Gosto de partilhar
Gosto de conhecer outras culturas e retirar o que elas têm de melhor
Gosto de provocar boas sensações
Gosto de ter tempo para mim
Gosto de cuidar de mim
Gosto que me transmitam confiança
Gosto de pessoas invulgares
Gosto de ver a maldade ser derrotada
Gosto de ver pessoas maldosas serem desmascaradas
Gosto que me peçam conselhos
Gosto de pessoas sensatas
Gosto da baixa mar para caminhar na areia molhada
Gosto de reanimar alguém em sofrimento
Gosto de saber que tenho o poder para reverter aquilo que não gosto em mim e à minha volta
Gosto de um bom abraço
Gosto de me sentir útil
Gosto de sentir que fiz o que era mais correcto
Gosto de ouvir a música da minha eleição em tom alto
Gosto de arrasar com pessoas preconceituosas e invejosas
Gosto de ser por vezes forte (nem sempre)
Gosto de boa companhia
Gosto de pessoas sensíveis
Gosto de saber que pensam como eu
Gosto de me sentir Feliz
Gosto de boas surpresas
Gosto de ver o bem triunfar sobre o mal
Gosto de ouvir histórias de sucesso
Gosto de pessoas humildes
Gosto da magia do Natal
Gosto de sonhar
Gosto de boas acções
Gosto de acabar o que comecei
Gosto que façam as minhas vontades
Gosto de sair da rotina
Gosto de aplicar bem o meu tempo e dinheiro
Gosto de ser saudável
Gosto de pessoas com bons princípios
Gosto de pessoas que não calam os seus sentimentos
Gosto de dormir bem e acordar melhor
Gosto dos finais de semana
Gosto de pessoas bem humoradas
Gosto de pessoas discretas
Gosto da novidade
Gosto de Destinos longínquos
Gosto de escrever quando me sinto triste e só
Gosto de gelado de morango
Gosto de pessoas com bom gosto
Gosto de pessoas, sem vocação para a inconveniência
Gosto de pessoas decididas
Gosto de TI, que sabes gostar de MIM.

sábado, 9 de julho de 2011

Almas desencantadas



Silêncio total, escassa luz natural, ruídos indecifráveis, respiração acelerada, algum receio mas também, muita curiosidade, em acabar com o mistério daquele lugar perdido na mata, que conta a lenda ter sido palco de um rapto de uma jovem de vinte anos.
Apesar da jovem ter sobrevivido ao trauma, quiz guardar segredo da história que protagonizou, bem como, todos os detalhes do medo que sentiu. Sabe-se que o responsável pelo acto não assumiu sua autoria e, por isso, foi condenado ao remorso que o atirou para o isolamento e, por fim, para a morte tão desejada.
Já passaram tantos anos mas, os mais velhos não esquecem esse passado mau que ensombrou a aldeia de Castrim, até ali refúgio de caminheiros rendidos à sua pacatez.
Samuel foi um dos hospedeiros desta história, carregada de dor, que seu avô não se cansa de lhe relembrar sempre que ele lhe dá essa oportunidade, aproveitando assim para esvaziar todo o seu legado de memórias.
Samuel cresceu a ouvir retalhos deste drama e, aos poucos, interessou-se em recriar esse episódio cheio de densidade dramática.
Os dados eram poucos e difusos, para reconstruir os momentos complicados que Marlene viveu na presença do seu agressor.
Seu espírito inquieto impulsionou-o a mover esforços para remexer na ferida, velada pela vergonha de uma comunidade fechada que, sem saber, gerou um monstro de quem nunca suspeitaram vir a temer.
Iládio, filho único de Gertrudes e Valdemar, enganou-os a todos com seu modo apagado de ser. Seus pais até o convenceram a experimentar a via religiosa. Julgavam eles ser a melhor escolha para ele. Porém, as constantes ausências de Iládio no seminário, arrasaram com as saudades da sua mãe, que acabariam por forçar a sua desistência. Seu pai achou ser um erro mas, aceitou a vontade da Mulher, nada conformada com o afastamento do seu menino de ouro. Iládio tornou-se um homem fechado em si mesmo, de poucas palavras, sem expressividade, baço e algo invisível. Foi através dessa invisibilidade que Iládio aproveitou para criar o seu disfarce, de homem inofensivo e sem maldade.
De longe, expiava Marlene, registando com pormenor cada passo seu, cada gesto seu, todo e qualquer sinal da sua vivacidade. Apesar de se terem cruzado várias vezes e Marlene, o ter ignorado, nunca houve uma tentativa da sua parte de aproximação. Até parece que, provocava aqueles reencontros para conceder a Marlene a oportunidade de se redimir, junto dele, por o ter evitado repetidas vezes. Tal não aconteceu. Marlene continuou a discriminá-lo e a ferir o seu frágil orgulho masculino.
Desprevenida, Marlene nem tentou escapar à sua boleia, naquela vespertina quinta-feira molhada de Setembro. Sem hesitar, acomodou-se a seu lado sem receio das suas atormentadas intenções. Iládio cumpria o seu plano, deixando-a cada vez mais desconfiada e assustada. Quando, finalmente, percebeu o desvio de comportamento e de trajecto também, sentiu-se ameaçada e gritou por ajuda. Ninguém a ouviu, naquele lugar, à mercê do abandono. Arrastada até ao buraco frio, outrora abrigo de ursos selvagens, suplica por um milagre que a resgate de todo o Mal. Caíra em desgraça, ainda a determinar pela vontade daquele homem movido pelo demónio. Que destino teria ele traçado para ela?
Sujeita aos seus caprichos doentios, aguardava ser alvo de todos eles. Estranhamente, nada disso aconteceu. Iládio mostrou-se muito cortês e atencioso, cedendo-lhe o seu casaco de fazenda para a defender do frio da mata. Marlene aceitou o gesto sem se comover e remeteu-se a um silêncio perturbado. Afinal que queria ele?
Sua calma, deixavam-na cada vez mais apreensiva e tentada a provocar-lhe uma resposta, que a ajudasse a desmontar o mistério em torno do seu rapto. Iládio continuava a tentar agradá-la apesar das suas continuadas rejeições. O pior aconteceu quando Marlene invocou o nome da sua querida e intocável Mãe Gertrudes, pensando conseguir demovê-lo daquela loucura. A ousadia enfureceu-o. Marlene teve que pagar a inconveniência com mordaças e amarras apertadas. Sem mobilidade, teve que aturar as metamorfoses de personalidade do seu carrasco. Ora atencioso, ora irado.
Tentou acariciá-la na face, desculpando seu temperamento intempestivo mas, Marlene sacudiu a cabeça sem reconhecimento. Iládio descontrolou-se e, sem piedade, desferiu-lhe um duro golpe na nuca que a deixou inconsciente. Ele só queria que Marlene o amasse. Pensava ele, ser capaz de ganhar o amor daquela Mulher. Julgava-a, nos mesmos moldes da sua mãe. Temente a ele e à sua dedicação.
Sem vocação para despistar psicopatas, Marlene alimentou a frieza de Iládio.
Vendo-a desmaiada sobre o manto dourado de folhas secas, declara-lhe o seu Amor. Tirando o enredo, o cenário até que era dos mais românticos. Lá nisso Iládio teve olho. Só não tinha noção dos seus actos impulsivos, marcados por uma infância protegida e sem contrariações. Aproveitando, a dormência de Marlene, corre para a estrada, onde largou o seu transporte e apressa-se a comprar mantimentos para ambos, programando mantê-la por mais algum tempo em cativeiro.
Atordoada com a força da pancada, recupera lentamente os sentidos que a hão-de tirar dali. Que ódio daquele paspalho perturbado, que a todos enganou com seu ar sereno e confiável, pensou ela. Sem poder gritar, nem movimentar pés e mãos, desespera por uma solução rápida que a liberte dos designíos do Mal. Em boa verdade, a necessidade aguça o engenho e foi com essa urgência que Marlene apurou sua esperteza. Esquecido no bolso das calças jazia o isqueiro, combustor de um vicío, condenado pela sociedade patriarcal, que privilegia o recato nas mulheres de família. Às escondidas, acalmava a ansiedade própria de uma juventude instável.
Bendito objecto non grato, que a desembaraçou das ataduras improvisadas pelo seu raptor. Acelerou o passo e correu até casa sem olhar para trás. O caminho era longo mas Marlene, enganava o cansaço com a sua obstinada vontade de fuga. Quando encontrou sua mãe, entretida no jardim de casa, só lhe apeteceu abraçá-la e ficar em segurança no seu colo, mas foi dissuadida pela má reacção da mãe à sua chegada. Eram recorrentes as suas implicâncias com os atrasos de Marlene para jantar. Só que desta vez não foram as passas que a atrasaram. Não valia a pena debater com a mãe suas razões. Ela iria encará-las como desculpas esfarrapadas para escapar dos castigos. Marlene, gramou com todos eles e sentiu em todos eles o desgosto de uma mãe movida pelo abandono. Até parecia que ela era culpada do seu estado de infelicidade. A mãe nunca a compreendeu e enquanto não apagasse o passado de amargura, jamais a compreenderia. Por isso aceitou mais um castigo e abafou o caso. Apenas sua melhor amiga soube do susto que viveu e até ela custou a acreditar. Comprometeu-se a revelar o segredo de Marlene, caso a amiga incorresse em perigo. Tal não foi necessário.
Iládio, temendo ser desmascarado, saiu de casa dos seus pais e converteu-se à clausura dos padres beneditinos, sem nunca ter confessado seu maior pecado.
Samuel termina a sua pesquisa, fotografando o lugar de perdição dessas duas almas desencantadas com o amor. Uma com falta de amor e outra com excesso dele. Qual destes traumas causa mais transtorno? Esta será a questão que Samuel irá desenvolver na sua tese de apresentação sobre os Perigos do Amor nas suas múltiplas facetas, que dedicará ao seu preferido contador de histórias de sempre e também seu avô.

quinta-feira, 30 de junho de 2011

Prisioneiros do Não


Vivemos escravos do Não,  que utilizamos para contrair um pretexto, que nos proteja da insegurança vaticinada por um sim, a tudo o que é novo e diferente. O não pode projectar negatividade às nossas acções que estão quase sempre sedimentadas num pensamento. Se esse pensamento beneficiar o Não, em detrimento do sim, naturalmente que as nossas acções perderão força para procriar outras acções, que aos poucos nos libertem do medo de confiar que seremos capazes de transitá-las com bom aproveitamento. O não inferniza as nossas Vidas e nós insistimos em recalcá-lo em todas as frases que proferimos e que comprometam a nossa estabilidade. Péssimo hábito português ou não. E lá estou eu mais uma vez a invocar o não para não emitir uma constatação que vá ferir susceptibilidades. O não tem sido tão recorrente e eficaz no atraso do nosso crescimento pessoal, que já nem nos apercebemos do efeito que ele exerce sobre nós. O Não persegue-nos como a cauda persegue os canídeos, que a tentam morder mas, a sua fraca elasticidade, não o permite. Tal como os cães nós também carecemos de elasticidade só que, no nosso caso, trata-se de uma elasticidade mental. Prisioneiros do Não e da sua carga destrutiva, lamentamos estar encurralados numa infelicidade sem retorno. Ser afirmativo não é sinónimo de vulnerabilidade mas, disponibilidade para mostrarmos a grandiosidade do nosso ser. Afirmativos mas não complacentes. Permitirmo-nos é uma condição afirmativa que não nos retira a essência. Ousar um sim em vez de cair mais uma vez num Não, promove novas e boas sensações, que procuraremos repetir ocasião atrás de ocasião. O Não é impedimento para tudo e causa remorso. Frases tais como: Não posso, não consigo, não sou assim, não me vou sentir bem, não tenho tempo, não sou capaz, não sei, matam a vivacidade que nos ilumina a alma e nos faz agarrar a Vida pelo pulso. O não só deveria ser usado em casos excepcionais, devidamente identificados e, quando aplicados fora de contexto, incorreriam numa sanção para o ser que dele tiver abusado.
O Não é óptimo a bloquear a emersão de bons momentos. Quando proferido indevidamente pode provocar estragos insolúveis.
Um Não deixa-nos pendurados na borda da piscina, aguardando o melhor momento para nos atirarmos de cabeça. No entretanto, vamos sendo salpicados pelos splashs daqueles que ousaram acabar com a repressão do Não. O pior é que em vez de seguirmos o exemplo, procuramos reforçar o Não com argumentos que colocam aqueles que ousaram desafiar-se como os nossos inimigos.



terça-feira, 28 de junho de 2011

Reclamar o que se rejeitou não reconhece o erro


Uma personalidade a quatro tons é assim que Vítor retrata a sua irmã Noémia. Há o tom bem disposto e bem humorado, depois há o tom triste e depressivo. Há também o tom irado e intolerante e, por fim, o tom zen, que a remete para outra galáxia, distante da terra e da sua órbita. Noémia transita de tom facilmente e de forma imprevista, sem que haja tempo, para suas companhias do momento, se prepararem para acolher seus múltiplos e variados estados de espírito. Todos eles são excessivos, cada um dentro do seu género. Que o diga Vítor, que convive de perto com as mutações da sua irmã caçula. O que resiste a uma convivência algo tumultuada é o Amor, que ambos nutrem um pelo outro e que se expressa de uma forma contraditória, aos olhos de estranhos, que não aprenderam a aprofundar o imenso mundo das emoções.
Noémia foi a última e derradeira oportunidade de seus pais aperfeiçoarem a beleza, estandarte da família Moreira,  que se desvaneceu com o nascimento de Vítor e Eliseu. Dois rapagões saudáveis mas com cara de Dustin Hoffman. Quem veio salvar o gene bom do clã foi Noémia, com seu porte elegante e suas feições delicadas, que escondem bem sua retorcida forma de ser. Sua ligação com Vítor é bem mais forte do que com Eliseu, que se recusa a aturar seus desvarios repentinos. Gosta de Eliseu mas é de Vítor que ela sente falta quando tem suas recaídas. 
Vítor sempre lhe emprestou seu tempo de qualidade. Bom ouvinte e Melhor Amigo, tornam-no alguém muito especial para Noémia.
Vivem todos juntos, na casa dos pais, que os cercam de mimo e afecto, dissuadindo-os de trabalhar sua autonomia e independência noutro lugar. Aceitam sem reservas todos os caprichos dos seus meninos só para os ver felizes e, principalmente, junto a eles. No entanto, Vítor está determinado a abandonar a casa onde reina a facilidade, que o poupa de consumições e o liberta para se dedicar ao que mais gosta. O motivo que está na base de uma decisão tão definitiva é a sua nova namorada Ligía. Ao contrário de Vítor, Ligía tornou-se independente muito cedo, pressionada pela instituição donde saiu aos dezassete anos, sem garantias de nada e entregue a si mesma. Sua inserção não foi fácil nem isenta de sofrimento. Batalha após batalha desafiou o seu destino condenado ao infortúnio e é hoje médica estagiária no Hospital do Prado, onde foi largada à vinte e cinco anos atrás por uma mãe em apuros. Nunca soube seu verdadeiro nome? A Directora da insituição que a acolheu decidiu chamar-lhe assim. Sem opção, Ligía ficou e hoje até se identifica bem com o nome que lhe foi atribuído.
Apesar de ter ultrapassado vários obstáculos quase insuperáveis, nenhum deles a tinha deixado tão ansiosa e nervosa quanto este que estava prestes a enfrentar. Iria ser apresentada à Família de Vítor e ser alvo da sua aprovação. Estava em pânico. Infelizmente, nunca privara com nenhum conceito de família e por não ter tido nenhuma que lhe servisse de exemplo, o embaraço era maior. Para além disso, eles iriam acusá-la de ter provocado a saída precipitada de Vítor. Mas pior que isso seria a reacção de Noémia, tão dependente de Vítor. Se não o amasse tanto, teria desistido antes mesmo de ter tentado uma aproximação. O cenário não se apresentava fácil nem harmonioso.
Pela primeira vez ficará a saber como são os almoços de domingo em família, que ela tantas vezes ouviu seus colegas de escola comentar com enfado e que hoje, teria a oportunidade de experimentar e, quem sabe até gostar. Tantas novidades num só dia para processar, provavelmente, iriam esgotá-la.
Vítor aguardava por ela no seu carocha amarelo dos anos setenta, herança bem estimada do seu avô Gaspar. Sem pressas, desceu a escadaria de mármore, ganhando algum tempo para se mentalizar para o encontro com os Moreira.
Com ar satisfeito e livre de preocupações, Vítor recebe-a com um sorriso, desimpedindo alguma tensão instalada. Mentalmente, Ligía tentava fabricar um diálogo de boas vindas que a inserisse num contexto tão diferente daquele que foi instigada a crescer. À espera deles no alpendre, estavam os quatro, dispostos numa espécie de barreira fechada, prontos a disparar sua simpatia forçada. Escoltada por Vítor, Ligía foi-se aproximando e apresentando-se a cada um deles. Conforme suspeitava, Noémia recebeu-a sem grande apoteose. Eliseu limitou-se a ser cordial. O Sr Alberto foi mais além e abraçou-a com veemência. Curiosamente, a Srª Elisa agarrou-a nos braços firmemente, fixou-a insistentemente e entrou em estado de choque, bloqueando qualquer manifestação de hospitalidade. Sem nada entender, Ligía fica incomodada e beija-a apressadamente nas faces e agradece o convite para almoçar, libertando-se das suas garras. Ainda sem reacções, a mãe de Vítor parece ter-se reencontrado com seu passado fantasma. Ligía ressuscitou algo que nunca ficou esquecido. Desenterrá-lo era demasiado doloroso mas as evidências estavam diante dos seus olhos, e não a deixavam desmentir a Verdade. Ligía é a filha que ela rejeitou, porque lhe faltou coragem para lutar sozinha contra o estigma de Mãe solteira e marginalizada.

   

terça-feira, 21 de junho de 2011

Medo de Falhar


Todos somos atacados por este medo avassalador, porque não aceitamos a falha como algo natural e parte do processo de aprendizagem e crescimento. As reprimendas que recebemos por falhar, quando eramos crianças, instigaram esse medo.
O que nos faz recuar é a incerteza da novidade e se somos, efectivamente, capazes de nos adaptar a ela e às suas exigências. Esquecemo-nos que o ganho por arriscarmos, justifica todo o mau estar que a transposição da barreira do medo provoca. Ao enfrentarmos as nossas inseguranças e as assumirmos, sem deixarmos condicionar a nossa Vida por elas, encarando-as como desafios interiores a combater com persistência e vontade de vencer obstáculos, reforçamos a confiança em nós mesmos.
Falhar pode ser cansativo, mentalmente esgotante, desmotivador, perturbador até, exigindo de nós uma renovação constante que regenere a nossa resistência à vaga de insucessos. Quem falha, tem iniciativa para lutar contra a adversidade e acredita poder mudar o rumo da sua felicidade, sem se deixar abater pelo desânimo que a escalada para o sucesso produz.
A nossa resistência interior é comprovada através de provas duras que expõem nossas fraquezas e nos intimam a agarrarmo-nos ao que temos de melhor. Atingir os nossos objectivos leva tempo, traz amarguras, ocupa-nos, aumenta as nossas expectativas, derruba as nossas esperanças, faz-nos desesperar por boas notícias que tardam em chegar. Mas não os ter, esvazia qualquer possibilidade de ser feliz e desestimula-nos, remetendo-nos à condição de seres irremediáveis, que são arrastados pelos outros.
Os que não tentaram não podem sentir arrependimento, só frustração. Os que desistiram a meio não acreditaram o suficiente. Os  que continuaram apesar dos fracassos, demonstraram ser dignos da longevidade do seu sucesso.
A nossa imagem não é confirmada pelas falhas que cometemos mas sim, pela forma como as superamos e nos fortalecemos, dando continuidade à perseguição daquilo que nos faz felizes.
Agarrarmo-nos à positividade, implica construir os nossos próprios níveis de motivação, o nosso espírito vencedor e esgotar todas as esperanças no percurso até ao topo dos nossos ideais.
Equilíbrio mental, dedicação, poder de iniciativa, arriscar, consciência de si mesmo, confiança e desapêgo pelo que nos faz acomodar são armas pessoais infalíveis para dominar. 
Mudar pensamentos e comportamentos destrutivos é fundamental para garantir vitórias individuais duradouras. Mesmo que os nossos esforços pareçam resultar infrutíferos, não nos podemos esquecer que o processo de crescimento é longo mas sustentável. Tudo tem seu tempo de maturação. Impaciência é pura perda de tempo. Para cativar ainda mais a nossa participação activa na "tirania" do nosso sucesso, devemos registar com euforia o que de bom vai sucedendo e que nos marcou positivamente.
Nossa fibra foi concebida para resistir, basta que não a aproveitemos inutilmente.
Todas as vozes negativas que ecoam interiormente devem ser abafadas e no seu lugar devemos colocar todos os estímulos positivos que desarmarão o medo e nos conduzirão onde quisermos.
Boas conquistas pessoais :)
     

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Judiação


Gaspar interrompeu as suas férias na Sardenha, para comparecer ao casamento da sua Grande Amiga Ana Diogo, por quem já sentiu um ligeiro arrebatamento amoroso, do qual guarda saudades. Eram muito próximos, impressionantemente parecidos, quase siameses. Tinham a mesma categoria de gostos, menos no que respeita à escolha de parceiros. Nisso destoavam completamente. Gaspar desimpedia o caminho de Ana, ocupando-se das Mulheres canhão e Ana, agradecia-lhe o gesto, entretendo-se com os homens, com talento para arrasar. Ambos marcavam pontos.
A chegada da idade adulta trouxe-lhes algum juízo, que se foi impondo e, aos poucos, afastou-os da diversão inconsequente que os aproximava aos fins de semana na Zona In de todos os vícios. As ausências tornaram-se uma constante, determinando a ruptura do compromisso de se encontrarem e o acordo mútuo de manter contacto, quando a oportunidade surgisse e o interesse também. A partir daí, suas Vidas assumiram rumos mais estáveis.
Os anos passaram por ambos, marcando-os de forma diferente, mas ainda assim não apagou a memória da época que os fez gozar a liberdade para desejar. Porque aproveitaram a disponibilidade para cometer loucuras, numa idade pródiga em rebeldia, hoje sentem que cumpriram sua passagem pela adolescência, sem arrependimento do que desperdiçaram.
Ana é hoje uma Mulher madura, que seduz com sua pele morena, olhos cor de mel, sorriso sadio e uma descomplexada forma de estar. Seu poder de atracção quase atingiu Gaspar e sua fraqueza por mulheres bonitas e de carácter forte.
Desta vez, encontrou-a em sossego, de costas voltadas para a porta, a expiar pela janela os movimentos do staff, responsável pelo evento. Perfeitamente, confortável no seu vestido de cetim cor salmão, definido para realçar sua silhueta de mulher que engana bem a marca do tempo, não se apercebe da presença de Gaspar. Sem a querer sobressaltar, aproxima-se tal qual um intruso cheio de cautelas e, num tom morno e suave, liberta o que toda a Mulher gosta de ouvir mas finge não fantasiar. Estás um espanto!
Ana voltou-se, reconhecendo a voz do seu velho e bom amigo Gaspar, matando seu desejo de o rever. O reencontro foi emocionado, selado com um forte abraço. Lamentaram não se terem reencontrado antes do casamento, para comungarem suas histórias de Vida, mas parece que tudo se conjugou para que tal não acontecesse. Infelizmente, a cerimónia estava prestes a começar e meia hora de intervalo é muito pouco para quebrar com tantos anos de distância. Quando não há alternativa, não se desperdiça a que se tem. Eis uma grande verdade.
Naturalmente que, Ana quiz satisfazer a sua curiosidade feminina e sem rodeios perguntou-lhe se trouxe companhia. Gaspar provocou o silêncio, deixando-a suspensa de interesse, por uma resposta que ele não soube suster por muito tempo, não fosse ela sofrer um ataque histérico desses que atacam noivas ansiosas.
Confirmou a presença de uma companhia mas não revelou sua identidade. Isso era de só menos importância.
Quis saber de Ana e quem foi o responsável pela sua demissão do estado de solteira. Ana sorriu e fez explodir a grande novidade, que mudaria o rumo da conversa. Propositadamente, intranquilizou Gaspar ao soltar o nome do seu futuro marido, sem poupar nos pormenores. Desconfiado das semelhanças entre ele e o seu noivo, deixou-a aprofundar um pouco mais. O pior acabou por ser verbalizado, sem suscitar dúvidas. O seu marido seria Gaspar. Encurralado numa armadilha, desata a agir movido pelo pânico. O choque é grande e a vontade de interná-la compulsivamente é tentadora. Gaspar, sempre habituado a ter opção encara aquele ultimato como o fim da sua liberdade intrinsecamente masculina. De facto, Gaspar antes de reencontrar Ana, estava cabisbaixo com a ideia de perder a sua paixão antiga, que tantas alegrias lhe proporcionou, mas seria demasiado egoísta dissuadi-la daquilo que a fará feliz e que ele jamais saberá corresponder.
Como iria ele demonstrar o seu afecto por ela e convencê-la que não chega, para alimentar uma Vida inteira em comum. Afinal, ele nunca manifestou interesse em casar e ela sempre soube disso. Porque é que insistia em provocá-lo com esse assunto tabu?
Controlando a situação, Ana deixa Gaspar esgrimir as razões que o fazem declinar o convite. Ela esforça-se para não comprometer seu plano tão cruel.
Cansado de lutar contra o silêncio da Amiga, Gaspar prepara-se para abandoná-la à sua própria insanidade e sem mais hesitações, dirige-se para a porta que entretanto se abre, colocando diante de si uma réplica fiel sua, vestida de smoking. Gaspar empalideceu de susto, não acreditando nas parecenças. Já sem humor, exige explicações mas é interrompido pela música de abertura da cerimónia civil que ecoa em todo o recinto, apressando-os a assumir os seus lugares. Entregue à sua confusão mental, Gaspar segue-os. Apesar de atordoado com a sucessão dos acontecimentos, recupera a sua condição de solteirão castiço entre as mulheres. No entanto, sua cabeça lateja por uma explicação. Afinal quem era aquele duplo da sua imagem, que se atreveu a casar com a sua melhor Amiga e, juntamente com ela, troçou do seu estado aflitivo?
Estava a ficar maluco com toda aquela encenação.
Em boa hora abriram o bar, onde ele se barricou para afogar a má digestão de todos os acontecimentos.

terça-feira, 7 de junho de 2011

O Mar enrola na areia



Céu limpo, sem nuvens, temperatura máxima de 27º, vento fraco, condições favoráveis à prática do "Praianismo" e gozar da liberdade que o Verão nos proporciona, para sair e conviver com a natureza. Cenário ideal para libertarmo-nos das pressões que a nossa participação activa na sociedade provoca. Mesmo que não pisemos a areia que se enrola nos nossos pés e não se descola, basta sentir a brisa marítima no rosto para sermos contagiados pelo espírito livre, que depressa encarnamos, com manifestações de descontracção e bem estar que se prolongam, deixando um rasto de felicidade que não causa indiferença.
Nosso corpo absorve todas as vibrações e energias daquele lugar, que nunca sai de moda e desperta interesse, até mesmo quando o sol não brilha e a tempestade está iminente. Há um enigma qualquer a ensombrá-lo, que o torna tão especial e apetecível. Nunca se sabe o que o mar nos devolve. Quais os segredos nele afundados. O seu encanto é tão grande, quanto o mistério que ele enterra. A sua condição de fenómeno faz-nos segui-lo para todo o lado, por onde ele se estende e por onde impera sua grandeza. Quantos de nós não se confessaram a ele em silêncio, se inspiraram nele, apaziguaram seus medos, suas inseguranças junto dele, se fortaleceram só de o admirar, se revitalizaram e a ele, continuam a recorrer para preencher um vazio qualquer. Os sons que emite penetram profundamente nas nossas almas, desesperadas por um suspiro de esperança. Quem tem o privilégio de tê-lo por perto não sofre de abandono nem de falta de esperança. Para alguns, continua a ser um luxo estar na sua presença, que outros banalizam e até desconsideram com seus abusos de cidadãos sem cultura cívica. Respeitá-lo implica preservá-lo e atribuir-lhe o seu estatuto de bem natural superior.
Novos e velhos reencontram seu passado bom naquele abrigo natural, onde todos os anos matam saudades. Retalhos de várias histórias estão condensados naquele livro granulado aberto para o mar, acolhimento de confidências.
Ocupa nosso imaginário, criando inúmeras fantasias inconfessáveis e que provavelmente fariam corar um albino.
Embalados pelas suas ondas, muitos arriscaram desafiá-lo mas foram sacudidos, para que não restasse dúvidas da sua supremacia. O seu ar sereno pode ser enganador e camuflar o seu mau feitio, tantas vezes provado por homens que nele procuram sustento. O seu poder é tão gigantesco, que as emoções suscitadas por ele, podem transitar da alegria à dor em instantes, deixando marcas indeléveis.
Quando ele faz rebentar seus bramidos altos é porque vem por aí carga negativa e só me resta desviar-me do seu caminho, para mais tarde voltar quando seu espírito serenar novamente. 

terça-feira, 31 de maio de 2011

Outsider

Bárbara nasceu com o nome que sua mãe gostaria de ter tido. Aliás nem teve opção. Ainda nem ela era nascida e seu destino já estava traçado. Bárbara seria o modelo de pessoa que sua mãe gostaria de ter sido e não foi, por culpa das más opções que tomou. Se soubesse da intenção da sua mãe, não teria nascido prematura, adiando por mais algum tempo o castigo de viver o sonho de vida de alguém. Nem a dependência afectiva fez Bárbara ceder aos caprichos da mãe. Em vez disso, Bárbara criara uma espécie de bloqueio defensivo a toda e qualquer imposição materna. Nunca houve acordo entre ambas. Apesar de nem sempre discordar da sua mãe, não conseguia libertar-se do seu espírito de contradição, que tantas vezes a defendeu de egos fortes e persuasivos. Remar contra a maré durante tanto tempo pode ser muito cansativo. É o caso de Bárbara que não consegue desligar-se desse mecanismo de defesa e, neste momento, debate-se com dúvidas profundas sobre o que realmente faz falta na sua Vida, do que gosta, de quem gosta, quem quer ser, a quem quer agradar. Contrariar os sentimentos que vão surgindo sem aliviar só os vai intensificar ainda mais e deixar que eles exerçam uma pressão ainda maior. Bárbara está sempre em luta com ela mesma e rejeita o que ela mesma desenvolve interiormente. Sua verticalidade de pensamento esbarra com sua exacerbada sensibilidade feminina. Poucos são os seus momentos de descontracção e é em permanente actividade mental que consome ansiedade, porque insiste em resistir às emoções para as quais não existe uma lógica ou então cria-lhes um enquadramento que as torne aceitáveis. Para ela é impensável viver sem razões. É com elas que esgrime a sua independência mental e individualidade.

Bárbara é a personificação da pessoa que sacrifica suas vontades com medo das emoções que possa estimular e, dessa forma, afectar a imagem de quem quer ser aceite. No seu mundo, os seus sentimentos são marcas de fragilidade e algo que os outros estranharão e não compreenderão. Nem ela mesmo consegue interpretá-los como se eles carecessem de interpretação. Sentir é deixar-se levar sem avaliar causas nem consequências. Os sentimentos vão e vêm . Se os aprisionarmos a uma razão jamais seremos livres para sentir sem culpa.
Bárbara é a única flor delicada a crescer na terra árida e sem vida, onde coabitam seres rastejantes que se aproximam curiosos e encaram aquela presença com estranheza e suspeição. Uma sensação de não pertença, perceptível pela reacção nada hospitaleira dos seus anfitriões que não a reconhecem como um dos deles.

Acordei o mundo

Najla tinha muita dificuldade em dormir. No seu entender, a vida podia acabar se se deixasse adormecer. Uma convicção implantada, desde a m...