Uma convicção implantada, desde a morte súbita, do seu tio Caleb, durante a noite e enquanto dormia.
Uma morte santa, para a sua mãe e injustificada, para Najla.
A perda inesperada, remexeu num sentimento, ainda intocado e agravou, inevitavelmente, a sua dificuldade em dormir.
Assim que, os olhos de Najla ameaçavam desaparecer, encobertos por olheiras profundas e descarnadas, a mãe, não hesitou em pedir ajuda ao médico de família.
O Doutor Ganges ou “o cuidador com jaleca”, como gostava de ser tratado. Apesar de oficialmente aposentado, continuava a prestar cuidados, a alguns pacientes especiais e algo aflitos.
— Najla, a tua mãe está muito preocupada contigo. Confessou-me que, passas as noites em branco — avançou o Doutor Ganges.
Ninguém parecia compreender os motivos que a impediam de dormir tranquilamente.
“O mundo lá fora é, simultâneamente, intrigante e deslumbrante, cheio de dicotomias, para eu perder tempo, com sonecas prolongadas”, pensava ela.
— Eu preciso viver. Dormir atrai a morte, como atraiu o meu tio Caleb — afirmou Najla, incomodada.
Quando a mãe de Najla telefonou, em apuros, tudo parecia indicar ser um problema fisiológico, muito provavelmente, causado por um mau funcionamento respiratório ou por dores de crescimento. Após conversar com a jovem, o Doutor Ganges percebeu que a raiz do problema era outra.
Desta vez, a consulta iria ser mais demorada do que o normal, mas pródiga, em conforto emocional.
A sua experiência e sensibilidade iriam sobrepor-se à cátedra de médico generalista, em modo automático.
Nestas ocasiões, a melhor prescrição é uma boa dose de conversa, alguns esclarecimentos, muita compreensão, um coração gentil e maduro.
— Ora bem, Najla, agora entendo a tua principal preocupação — disse ele, com gentileza.
O teu tio viajou mais cedo, não porque, foi apanhado a dormir profundamente, mas, porque, o seu coração, subitamente, parou. Nem houve tempo, para sentir dor. Uma raridade. Por isso, a tua mãe chamou à sua partida, uma morte santa.
— A dor precisa de tempo e espaço para se anunciar e, posteriormente, materializar-se.
O corpo dá sinais e a tua atenção plena a essas sensações incómodas, permite aos médicos, como eu, atuar na sua eliminação ou travar a sua ramificação — concluiu o Doutor Ganges.
Najla, pareceu entender.
— A dor de que fala é física. Porém, as dores que me aprisionam, não vêm do corpo. São dores subjetivas.
Ela até diz que, há dias, em que essas dores são mais intensas e pesadas.
Olhou para o vazio, entregando-se à reflexão.
— No autocarro, na escola, na rua, na padaria, até à saída da igreja, ouço vozes a suplicar por ajuda.
É estranho!
As histórias de dor que habitam o bairro, não me são indiferentes. Todas elas fazem eco no meu coração esponjoso e frágil.
O cheiro a medo e desespero entranha-se e não sai, nem com purgas.
Até o meu gato Curcúma, desaparece sem deixar rasto. Só reaparece, quando ouve a lata de atum gourmet tinir, anunciando a chegada da refeição noturna.
Após os desabafos de Najla, o Doutor prosseguiu com a sua missão voluntária de apaziguamento.
A paz em falta na tua comunidade e noutras, resulta dessa inconsciência e desresponsabilização pela dores e carências do outro.
- Ocupa-te do que consegues mudar - aconselhou, o Doutor Ganges.
- Vê o meu caso. Eu considero-me um agente da paz. Ao longo destes anos, ao serviço das comunidades, onde estive destacado, cuidei do bem estar físico e emocional dos meus pacientes. O cuidado é o melhor dos afetos!
Najla repreendeu a mãe, por tamanha infantilidade. A sua salvação foi o Doutor Ganges e seu convite apressado para participar da conversa.
Nem houve oportunidade para tirar satisfações de tal ousadia. O Doutor, prontamente, retomou o assunto, dizendo que, a origem do problema tinha sido desvendada e a forma de o resolver, implicaria a sua colaboração.
Sem nada perceber, mas com muita vontade de colaborar, aceitou o repto sem reservas.
O cansaço resultante de um dia preenchidíssimo, também, não te vai fazer sucumbir ao descanso. Inclusive, pode surtir o efeito contrário e acentuar essa resistência militante ao sono.
Rezas, cantigas, modinhas, mezinhas, tisanas, danças tribais e amuletos, funcionariam, apenas , como distratores e iriam precipitar a fuga do gato Curcúma para parte incerta.
É aqui que o Doutor Ganges faz um desvio gigantesco e inesperado no seu discurso. Algo desconcertante e improvável acontece.
Sem cerimónias, o médico, atira com uma proposta nada ortodoxa.
Em tempos alguém disse que ele, por vezes, perdia o juízo e receitava missas em latim, sobretudo, aos pacientes com queixas diárias e repetitivas - lembrou, em silêncio, a mãe de Najla.
Nesse caso, terias de estar preparada para receber o seu espírito. Não sabemos de que forma o vamos encontrar. Há espíritos inconformados, irados e despreparados. O do teu tio pode, muito bem, ser um deles.
Najla e a mãe estremeceram de medo, com a ideia alternativa e sinistra, do Doutor Ganges, para combater insónias e recuperar a paz e tranquilidade perdidas.
Qualquer dia estou a cuspir fogo num anfiteatro romano, desses, que são recuperados para receber exibições circenses e outras recriações históricas - pensou Najla, ainda incrédula, com a sugestão paranormal, que lhe foi arremessada.
A mãe sacudiu a cabeça em sinal de repúdio, enquanto que, Najla, ficou de pensar no assunto.
Ambas acompanharam o Doutor Ganges à porta de saída e agradeceram a sua pronta disponibilidade para ajudar.
A mãe virou costas e correu para a sala, ligar a tv no canal das notícias, em busca de novas tensões realistas e terrenas. Quiz sacudir o encosto deixado pelo Doutor Ganges e seu plano obscuro de cura sobrenatural. Por sua vez, Najla refugiou-se no quarto dos pensamentos profundos, afundada no pêlo macio e dócil do seu amigo doméstico.
A luz filtrada entrou suavemente e amornou o ambiente, deixando-o ainda mais aconchegante e confortável. Não tardou, a atingir o Curcúma, que acabou por se render a um sono anestésico, bem juntinho à dona dos melhores cafonés.
Esta luz parecia diferente das anteriores. Era uma fonte de luz inebriente que abraça e nos envolve, de uma tranquilidade transformadora. Mordeu o seu cansaço e cobriu-a de uma moleza rasteira, que a fez escorregar de sono e entregar-se aos sonhos.
Houve tempo para tudo, até para visitar o seu Tio Caleb, no seu refúgio campestre, rodeado de animais e feliz na sua nova condição. Najla percebeu que estava em paz.
Ainda hesitou, mas o Doutor é quase família e não havia motivos para recear.
- O que faz aqui? - perguntou Najla, à queima roupa.
Ganhamos um pouco mais de amizade mas, entretanto, as propriedades analgésicas do chá atingiram-te como um torpedo e caíste num sono profundo - respondeu o Doutor Ganges.
- Acordaram o mundo ou eu é que acordei? - soltou Najla, ainda com preguiça.
