Pepita Cardo riscou aquele soalho flutuante, tantas
e tantas vezes, num corrupio incessante. Em silêncio se confessava e em
silêncio se retirava novamente, para mais tarde voltar. Aqueles exíguos metros
quadrados de espaço guardavam segredos, abafados por paredes duplas de gesso,
cobertas de memórias, pensamentos, histórias de vida, retratos, recordações,
vestígios de uma passagem prolongada. Aquele espaço era bem mais que uma cela
era o seu refúgio sagrado com entrada restrita. Nele criava os seus disfarces, ensaiava
o seu papel para aquela noite e preparava os diálogos com os quais pretendia
enrolar suas vítimas, nunca agia da mesma forma para não perder eficácia. O
mais importante era nunca perder o contole da situação e dominar para
conquistar. O que mais a excitava era a sensação de poder que lhe dava mais do
que convertê-los aos seus caprichos. O medo nos olhos das suas vítimas,
levavam-na ao rubro e a uivar de satisfação. Os melhores eram aqueles que
imploravam para que os poupasse da sua diversão com requintes de malvadez.
Estudava ao pormenor os seus peões, seus percursos
de vida, seus princípios, suas personalidades, suas maneiras de estar, seus
passos, seus vícios, seus pontos fracos e principalmente suas falhas de
carácter. Quanto mais imperfeitos fossem maior seria a probabilidade de caírem
na sua rede de perigosa sedução. Certamente, poucos iriam chorar suas ausências
ou guardar boas memórias suas. Esses eram o seu alvo preferido.
Inicialmente, fingia ser ela a corsa perdida na
floresta que aceita ser resgatada pelo macho experiente cheio de boas intenções.
Raramente falhava. Eles, por sua vez, sentiam-se esperançosos, vulneráveis,
ansiosos e confiantes de que estavam em vantagem, inconscientes do perigo em
que poderiam incorrer.
Poucos a surpreendiam. Na verdade, era mais ela a surpreendê-los.
Aliás esse era o grande objectivo.
Todas as noites repetia o mesmo ritual que a
poderia levar a ser candidata de um óscar, caso se tratasse da cena de um
filme, onde ela participasse como protagonista, tal era a dimensão da sua capacidade
de iludir e convencê-los das suas personagens. A sua escola foi a Vida amarga
que levou e da qual nunca recuperou. Alguém tem de pagar. Pagam aqueles que reproduzem
a imagem dos fantasmas do seu passado e que para ela valem muito pouco enquanto
pessoas.
Com o tempo, o seu distúrbio foi-se intensificando
em vez de enfraquecer. As suas iniciativas não contribuem para a sua recuperação.
Pelo contrário, fazem crescer ainda mais a raiva e a vontade de castigar aqueles
que descendem em carácter e atitudes do causador da sua bipolaridade.
Desse já não reza a história. Tropeçou tantas vezes
no seu caminho que acabou por morrer nesse mesmo trajecto. Desta vez tropeçou
mas não se levantou mais. Morte ocasional. Assim se rematou o caso sem levantar
suspeitas.
Desde esse dia Pepita Cardo insiste em querer matar
a imagem do seu agressor vezes e vezes sem conta, que apesar de morto, continua
bem vivo e amaldiçoando sua vida.
