Acordei ao som de gargalhadas estridentes, que
ecoavam em toda a casa e fizeram estremecer o meu gato persa “centelha”, que
aborrecido se esgueirou para o jardim.
Na verdade, aquelas risadas eram me
familiares mas, o despertar retumbante atordoou de tal forma o meu pensamento,
que este demorou a reestabelecer-se. Precisei de alguns minutos para descobrir
o culpado, por aniquilar a tranquilidade do meu sono, mas até que não foi
difícil achá-lo. Só podia ser o Vicente e sua espaçosa e generosa forma de ser,
que a todos conquista e eu, então, que o diga. Fui impiedosamente arrebatada pela sua envolvência magnetizante. Até
hoje, ainda não parou de me surpreender com suas atitudes inesperadas de uma
sensibilidade invulgar.
Aliás, nosso primeiro encontro foi no mínimo
caricato, porém inesquecível. Estava eu a recuperar de uma cirurgia à tiróide,
ainda sob observações médicas e sem data prevista para abandonar a enfermaria,
quando sou abordada por um fulano de olhar castiço, em roupão e chinelos a
condizer e, sem sinais visíveis de enfermidade. Nem parecia pertencer aquele
local.
Da forma como estava vestido associei que,
tal como eu, deveria ser inquilino temporário do hospital. Porém, seu
contentamento despropositado, levou-me a suspeitar que tivesse fugido da ala
psiquiátrica e aterrado na normalidade dos meus aposentos. São inúmeros os
quartos de um hospital, mas sem qualquer razão aparente que o justificasse, foi
justamente aterrar no meu e atormentar meu sossego. Logo eu, que prezo tanto a
minha sanidade mental e evito conviver com a loucura dos outros para não vir a
ser contagiada e perder o meu equilíbrio. Tentei não mostrar-me intimidada com
sua presença e procurei reagir com normalidade mas, sem prolongar muito o diálogo,
para não fomentar nenhum tipo de empatia. Esse era o meu objectivo. Eu digo era,
porque se revelou totalmente o contrário.
Não tardou a apresentar-se e tentar ganhar
proximidade. Iniciei automaticamente um processo de desconfiança e, para me
defender de um possível ataque tresloucado, agarrei o botão de emergência e
esperei que a ocasião surgisse. Seus modos educados, sua simpatia e amabilidade
amorteceram o meu instinto de defesa, que deixou de estar alerta e fez soltar,
sem esforço, o botão de socorro. Algo o tinha atraído aquele local e algo me
atraiu nele e me fez acreditar que podia confiar. Certamente, a convalescença
deixou-me mais carente e sôfrega de afectos.
Vicente, tal como eu estava hospitalizado e a
recuperar bem, de uma operação na coluna. Anos e anos de más posturas, intensa
actividade física, excessos de carga. Não que eu tivesse perguntado ou sequer
presumido, esta foi a explicação, que ele mesmo, fez questão de revelar e que
explicam o seu internamento. Se bem que não me admirou, quando apontou como uma
das causas actividade física frequente e excessiva, a julgar pelo seu físico
bem torneado, de fazer corar o seu antepassado Adónis. Se quisesse, já teria
sacado o acesso à sua conta bancária, tal era a sua permeabilidade e vontade de
se expor.
A julgar pelos dedos nus e sem marcas, não é
comprometido mas quantas já não foram enganadas pelas aparências e conclusões
precipitadas como esta. Prefiro continuar a guardar reservas.
Continuava sem saber o que o tinha atraído
até ali e apesar de me achar uma pessoa frontal e sem rodeios, estranhamente,
aguardava os próximos
desenvolvimentos com expectância.
Finalmente, resolveu desvendar o mistério e
acabar com o suspense.
A razão da sua intrusão deixou-me perplexa e
ao mesmo tempo enternecida com a sensibilidade demonstrada.
O meu quarto, sem que eu me apercebesse,
tinha vista para a praia e sua marginal iluminada, sempre movimentada por
casais apaixonados, praticantes incansáveis de jogging, crianças endiabradas,
astutos comerciantes, turistas incautos, entre outros. Vicente queria apenas
sentir o palpitar da vida no exterior e assistir à mobilidade das pessoas no
seu dia-a-dia. Sentia-se engaiolado e impedido de fazer o que mais gosta. Nunca
tinha permanecido tanto tempo fechado e estava a detestar a sensação. Já não
era muito do seu agrado, apesar de o fazer por consideração, visitar amigos e
familiares hospitalizados. Sempre que era obrigado a isso, ausentava-se várias
vezes com o pretexto do famigerado vício do tabaco.
Senti que as longas conversas que tivemos o
acalmavam e o faziam esquecer desse lugar sinistro que é o hospital, sua mais
recente morada temporária.
Foi nesse clima de cumplicidade que partilhamos
a mesma janela e usufruímos demoradamente da companhia um do outro com a conivência
do staff da enfermaria, que se rendeu à nossa vontade de estarmos juntos.
Naturalmente, criamos uma forte Amizade que
se transformou numa crescente relação de Amor que tudo supera, até mesmo
gargalhadas sonoras a consumir o meu sono e a fomentar a minha curiosidade. Apesar
de tudo, deixei-me estar, sentia-me demasiado cansada para desperdiçar minhas
energias com uma anedota ou piada qualquer, além disso, iria precisar de ter
mais motivos para me rir de manhã, antes mesmo de encarar uma jornada de
trabalho. Por isso, preferi questionar, no dia seguinte, a razão de todo aquele
alvoroço nocturno.
Vim a saber que as explosões de riso foram
provocadas pela seguinte mensagem, deixada pelo nosso filho Tiago de apenas
sete anos:
“Pai
e Mãe, a partir de hoje e para sempre, evitem beijos e recados prolongados à
porta da escola. Eu sei que vocês me amam. Deixem-me crescer. Os beijos
fazem-me encolher e os recados fazem-me chegar atrasado às aulas. Também vos
Amo. Respeitem, por favor, meu pedido.
O
Vosso Filho Tiago”.
Por fim, eramos dois pais comovidos por ter gerado
um filho tão maravilhoso.
Valeu a pena ter esperado pelo dia seguinte e
amanhecer com este dado novo. Nosso filho está a crescer e nós vamos ter que
conviver com isso e resignarmo-nos às evidências.