quarta-feira, 26 de novembro de 2025

Acordei o mundo

Najla tinha muita dificuldade em dormir. No seu entender, a vida podia acabar se se deixasse adormecer.
Uma convicção implantada, desde a morte súbita, do seu tio Caleb, durante a noite e enquanto dormia.
Uma morte santa, para a sua mãe e injustificada, para Najla.
A perda inesperada, remexeu num sentimento, ainda intocado e agravou, inevitavelmente, a sua dificuldade em dormir.
Assim que, os olhos de Najla ameaçavam desaparecer, encobertos por olheiras profundas e descarnadas, a mãe, não hesitou em pedir ajuda ao médico de família.
O Doutor Ganges ou “o cuidador com jaleca”, como gostava de ser tratado. Apesar de oficialmente aposentado, continuava a prestar cuidados, a alguns pacientes especiais e algo aflitos.

Najla, a tua mãe está muito preocupada contigo. Confessou-me que, passas as noites em branco — avançou o Doutor Ganges.

Ninguém parecia compreender os motivos que a impediam de dormir tranquilamente.

“O mundo lá fora é, simultâneamente, intrigante e deslumbrante, cheio de dicotomias, para eu perder tempo, com sonecas prolongadas”, pensava ela.

— Eu preciso viver. Dormir atrai a morte, como atraiu o meu tio Caleb — afirmou Najla, incomodada.

Quando a mãe de Najla telefonou, em apuros, tudo parecia indicar ser um problema fisiológico, muito provavelmente, causado por um mau funcionamento respiratório ou por dores de crescimento. Após conversar com a jovem, o Doutor Ganges percebeu que a raiz do problema era outra.

Desta vez, a consulta iria ser mais demorada do que o normal, mas pródiga, em conforto emocional.

A sua experiência e sensibilidade iriam sobrepor-se à cátedra de médico generalista, em modo automático.

Nestas ocasiões, a melhor prescrição é uma boa dose de conversa, alguns esclarecimentos, muita compreensão, um coração gentil e maduro.

— Ora bem, Najla, agora entendo a tua principal preocupação — disse ele, com gentileza.

    O teu tio viajou mais cedo, não porque, foi apanhado a dormir profundamente, mas, porque, o seu coração, subitamente, parou. Nem houve tempo, para sentir dor. Uma raridade. Por isso, a tua mãe chamou à sua partida, uma morte santa.

— A dor precisa de tempo e espaço para se anunciar e, posteriormente, materializar-se. 

O corpo dá sinais e a tua atenção plena a essas sensações incómodas, permite aos médicos, como eu, atuar na sua eliminação ou travar a sua ramificação — concluiu o Doutor Ganges.

Najla, pareceu entender.

— A dor de que fala é física. Porém, as dores que me aprisionam, não vêm do corpo. São dores subjetivas.

A Saïdia, a minha melhor amiga, diz que, sente o mesmo. 
Ela até diz que, há dias, em que essas dores são mais intensas e pesadas.

Olhou para o vazio, entregando-se à reflexão.

— No autocarro, na escola, na rua, na padaria, até à saída da igreja, ouço vozes a suplicar por ajuda.

É estranho!

As histórias de dor que habitam o bairro, não me são indiferentes. Todas elas fazem eco no meu coração esponjoso e frágil.

O facto da minha mãe e avó, ocuparem-se dos problemas dos outros e não se inibirem de comentá-los, enquanto, preparam as refeições, não facilitam a minha vida. A gravidade com que falam sobre o assunto, fere a minha sensibilidade e encara-os, como se fossem meus. Se procuro saber um pouco mais, elas animam-se. No final, retiro-me para o meu quarto, visivelmente abalada. 
O cheiro a medo e desespero entranha-se e não sai, nem com purgas. 
Até o meu gato Curcúma, desaparece sem deixar rasto. Só reaparece, quando ouve a lata de atum gourmet tinir, anunciando a chegada da refeição noturna.

Após os desabafos de Najla, o Doutor prosseguiu com a sua missão voluntária de apaziguamento.

- O mundo está cada vez mais doido e desalinhado, com um dos grandes valores morais, que deve servir de farol, para a tomada das nossas deciões e práticas habituais. Falo do amor ao próximo. Os mais sensitivos, como tu, são muito conscientes dessa enfermidade social e entendem a sua importância - continuou o Doutor Ganges, a pregar a doutrina, dos que ainda se importam. 
A paz em falta na tua comunidade e noutras, resulta dessa inconsciência e desresponsabilização pela dores e carências do outro. 

- Ocupa-te do que consegues mudar - aconselhou, o Doutor Ganges.

- Vê o meu caso. Eu considero-me um agente da paz. Ao longo destes anos, ao serviço das comunidades, onde estive destacado, cuidei do bem estar físico e emocional dos meus pacientes. O cuidado é o melhor dos afetos!

A conversa ia solta, até que, a mãe de Najla, faminta por novidades, decidiu esgueirar-se, sorrateiramente, atrás da porta entreaberta da sala. No seu encalço e em silêncio, ia o gato Curcúma, exibindo o seu pêlo sedoso e metediço. A perseguição fê-lo distrair-se e 

vassourar as pernas da sua dona, fazendo-a soltar um soprano guincho. 
Najla repreendeu a mãe, por tamanha infantilidade. A sua salvação foi o Doutor Ganges e seu convite apressado para participar da conversa.
Nem houve oportunidade para tirar satisfações de tal ousadia. O Doutor, prontamente, retomou o assunto, dizendo que, a origem do problema tinha sido desvendada e a forma de o resolver, implicaria a sua colaboração. 
Sem nada perceber, mas com muita vontade de colaborar, aceitou o repto sem reservas.

- Eu podia receitar-te chás com propriedades tranquilizantes, químicos, meditação, técnicas de relaxamento, para combater essa resistência estoica ao sono mas, eu sei, que não vão atuar com total eficácia e, acredito que, acabarás por interromper o tratamento. 
O cansaço resultante de um dia preenchidíssimo, também, não te vai fazer sucumbir ao descanso. Inclusive, pode surtir o efeito contrário e acentuar essa resistência militante ao sono. 
Há uma urgência em ti, que não vou conseguir calar. Nem é esse, o meu propósito.

As notícias que invadem a tua redoma de segurança, vão continuar a salpicar os teus dias de sensações boas e más. É inevitável!
Rezas, cantigas, modinhas, mezinhas, tisanas, danças tribais e amuletos, funcionariam, apenas , como distratores e iriam precipitar a fuga do gato Curcúma para parte incerta.

É aqui que o Doutor Ganges faz um desvio gigantesco e inesperado no seu discurso. Algo desconcertante e improvável acontece. 

Sem cerimónias, o médico, atira com uma proposta nada ortodoxa.

Em tempos alguém disse que ele, por vezes, perdia o juízo e receitava missas em latim, sobretudo, aos pacientes com queixas diárias e repetitivas - lembrou, em silêncio, a mãe de Najla.

- A única solução para o teu caso é recorrer a uma sessão espírita, que promova um encontro entre ti e o teu Tio Caleb. A comunicação terá de ser conduzida por uma médium, especialista em cruzar pessoas, que se encontram em planos espirituais distintos. 
Nesse caso, terias de estar preparada para receber o seu espírito. Não sabemos de que forma o vamos encontrar. Há espíritos inconformados, irados e despreparados. O do teu tio pode, muito bem, ser um deles.

Najla e a mãe estremeceram de medo, com a ideia alternativa e sinistra, do Doutor Ganges, para combater insónias e recuperar a paz e tranquilidade perdidas.

Qualquer dia estou a cuspir fogo num anfiteatro romano, desses, que são recuperados para receber exibições circenses e outras recriações históricas - pensou Najla, ainda incrédula, com a sugestão paranormal, que lhe foi arremessada.

A mãe sacudiu a cabeça em sinal de repúdio, enquanto que, Najla, ficou de pensar no assunto.

Ambas acompanharam o Doutor Ganges à porta de saída e agradeceram a sua pronta disponibilidade para ajudar.

A mãe virou costas e correu para a sala, ligar a tv no canal das notícias, em busca de novas tensões realistas e terrenas. Quiz sacudir o encosto deixado pelo Doutor Ganges e seu plano obscuro de cura sobrenatural. Por sua vez, Najla refugiou-se no quarto dos pensamentos profundos, afundada no pêlo macio e dócil do seu amigo doméstico. 

O dia ia a meio e o sol de outono bocejou junto à sua janela.
A luz filtrada entrou suavemente e amornou o ambiente, deixando-o ainda mais aconchegante e confortável. Não tardou, a atingir o Curcúma, que acabou por se render a um sono anestésico, bem juntinho à dona dos melhores cafonés. 
Esta luz parecia diferente das anteriores. Era uma fonte de luz inebriente que abraça e nos envolve, de uma tranquilidade transformadora. Mordeu o seu cansaço e cobriu-a de uma moleza rasteira, que a fez escorregar de sono e entregar-se aos sonhos.

Houve tempo para tudo, até para visitar o seu Tio Caleb, no seu refúgio campestre, rodeado de animais e feliz na sua nova condição. Najla percebeu que estava em paz.

Nas proximidades, vivia o Doutor Ganges e, Najla sem saber, tropeçou de curiosidade e bateu à sua porta, em busca de respostas. Parecia até que estava à sua espera. Recebeu-a com um sorriso terno de satisfação e convidou-a a entrar.
Ainda hesitou, mas o Doutor é quase família e não havia motivos para recear.

- O que faz aqui? - perguntou Najla, à queima roupa.

Eu nunca saí deste lugar. Tu é que vieste ao meu encontro e eu acolhi o teu espírito ativista, que não economiza preocupações. Vinhas agitada, cansada, revoltada e eu ofereci-te um chá, feito com as milagrosas ervas de São João, colhidas do meu jardim. A minha intenção era acalmar essa tua urgência em transformar o mundo, num lugar mais justo e equilibrado. 
Ganhamos um pouco mais de amizade mas, entretanto, as propriedades analgésicas do chá atingiram-te como um torpedo e caíste num sono profundo - respondeu o Doutor Ganges.
Novamente, a luz solar e sua entrada triunfante, vieram castigar os seus olhos semicerrados, obrigando-a a acordar e encarar a realidade caseira, que berrava da cozinha para ir jantar.

- Acordaram o mundo ou eu é que acordei? - soltou Najla, ainda com preguiça. 


quinta-feira, 16 de outubro de 2025

Duração de uma pedra de gelo

Três pedras de gelo enfiadas num recipiente metálico. A duração de cada uma delas é curta, assim como, o seu efeito.

Os boletins de voto funcionam como essas pedrinhas de gelo, suas repercussões são finitas e percepcionais, sem marcas indeléveis no estado das coisas.

O nosso voto não se materializa em algo, com efeitos imediatos nas nossas vidas. A democracia vigente subverteu o propósito essencial das conquistas dos nossos antepassados Os ideais democráticos sofrem um processo semelhante, ao descongelamento dos cubos de gelo.

No início, perfeitos e sólidos, com boas intenções mas, depois, revelam-se pouco duradouros e, sem implicações reais na vida dos mortais. Ideias refrescantes que convencem um eleitorado militante e cumpridor do seu direito cívico, a quem retiraram a esperança, com promessas vãs e trepadores sedentos de poder.

Basicamente, os efeitos da dormência eleitoral, logo após os gritos de vitória, duram tanto como o meu gin com três pedras de gelo.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

MEU NOME É ALMERINDA!

Já morri há alguns anos, bem longe do local onde nasci e pouco cresci. Não guardo saudades, só rancores e, talvez, por isso, não me quisessem ali, junto deles e próxima, de todos os outros que se achavam diferentes de mim.  O meu interesse em regressar não era emocional, muito menos umbilical. Na verdade, eu só queria esquecer, mas para isso precisava beber.

A minha fonte de rendimento era a minha mãe, numa troca de favores, embrulhados em remorsos, ressentimentos, vergonha e compensações rasas, sem margem para perdões e absolvições.

Os homens não me queriam mais e os que me queriam eram esmurrados à saída. Lembravam-me o homem, que a minha mãe escolheu para ser meu pai.

O pesadelo de todas as noites.

Aquele homem, outrora, alto, robusto, olhar inexpressivo, com mãos de aço, rude e cheio de más intenções, tombou de dor e morreu desamparado. Gostava de ter estado presente e vê-lo, ali, suplicante, em agonia, impotente, frágil e só. Morreu jovem, mas demasiado tarde. Pelo menos, para mim.  

Nasci e cresci num enquadramento, onde a violência, os abusos, o choro abafado, a negligência física e emocional, a conivência, a estigmatização, faziam parte do meu quotidiano.

Ninguém se queria aproximar de mim, com medo das minhas reações e eu, por sua vez, com medo das suas intenções.

Retiraram-me todas as oportunidades, mal tinha acabado de nascer e, o que se seguiu, foi um descarrilamento para o abismo.

A bebida era a minha anestesia para tudo e foi, também, a que me conduziu até aqui. Só queria esquecer, que nasci Almerinda, a condenada, da villa pasquim.

Adotei o nome Marisa, bem distante daquele que me calhou e me traz a lembrança do meu oposto. A menina com mais oportunidades na escola, com melhores notas, melhores pais, melhor família, melhores amigos, melhor casa, melhor futuro.

A falecida Almerinda e a Marisa eram os extremos opostos que se estranhavam, mas não se evitavam. A Marisa intrigava-se comigo e, eu, com ela. O meu jeito fechado, os meus maus modos, os meus andrajos, o meu isolamento, a minha fúria e vontade de aprender, despertaram-lhe curiosidade. Por sua vez, a sua graciosidade, inteligência, doçura, beleza cuidada, modos suaves, conquistaram meu coração inabitado.

As amigas improváveis que chocaram o universo escolar e provocavam mau estar nas amigas de berço, carregadas de afinidades.

Eu não pertencia ao mundo delas que, também, era o mundo da Marisa. Algo que, eu percebi desde muito cedo, quando tudo me foi negado. 

Não havia lugar para mim.

A Marisa é o alter ego da Almerinda

Uma mulher vistosa, atraente, provocadora, enigmática e perigosa. Na verdade, eu sentia-me uma justiceira implacável, invencível e poderosa.

Marquei todos os homens que compraram o meu amor pelo canal virtual.

Menos, um.

Aquele que, me fazia desligar deste mundo cruel foi poupado.

Antes de desaparecer, dopava-os até à inconsciência e marcava-os com um ferro em brasa, com as iniciais M&A, como se faz ao gado. 

A minha identidade nunca foi revelada, para evitar perseguições e retaliações. Apesar de terem contratado a Marisa pelo canal Amor Sem Cerimónias, eu nunca existi e meu perfil foi apagado de todos os históricos. Desaparecia por uns tempos para mais tarde regressar, novamente, com o mesmo nome, numa outra área geográfica, num outro país, num outro estado, diante de outras vítimas, mas com o mesmo propósito.

Para mim eram todos iguais, com o mesmo padrão de comportamento, emocionalmente impotentes, sem carisma, brutalmente básicos e ingénuos. 

Todos, menos um.

O visitante número 99, com o nome de um guerreiro viking, nacionalidade universal e perfume Valetino, distanciava-se do padrão habitual, o que fez ativar as minhas desconfianças militantes. A sua entrada harmoniosa, educada, empática e interesse em me conhecer, levantaram todas as suspeitas e red flags. 

Ele adotou o nome de um guerreiro e eu vesti-lhe a armadura. 

O facto de não querer despachar o assunto e procurar maior envolvência, quase me conquistou, num momento de distração meu. Por pouco, fui apanhada.

A recusa em conversar fê-lo recuar e abortar o ato, mesmo tendo pago e bem, por uma noite comigo.

Nunca me tinha acontecido!

Pensei que, nunca mais fosse regressar e forçar-me a concretizar suas bizarrias.

Voltou e disposto a conversar, na tentativa de me conhecer melhor.

Ativei minhas reservas, meus planos de emergência, em caso de ataque súbito e encarei a sua vontade de conversar, como uma fantasia paga de um homem solitário.

Não podia deixar que ele deixasse marcas em mim.

As visitas foram se tornando cada vez mais frequentes. O interesse era sempre o mesmo, relaxar, chillar, falar sobre o seu dia, seus likes, dislikes, sua infância, a morte dolorosa do seu cão viking, dormitar um pouco, tomar um duche e sair com um sorriso de agradecimento perfumado. 

A sua presença era cada vez mais aguardada, a vontade de beber subitamente esfumou-se e a permanência naquele lugar tinha excedido o prazo habitual, muito por culpa do guerreiro viking e seu investimento de longa duração em mim. Por esta altura, já estaria longe a carimbar minhas iniciais M&A.


quarta-feira, 10 de setembro de 2025

Dinâmicas de grupo na ótica do sabotador

Dinâmicas de grupo na ótica do sabotador

Quem és tu, neste plano?

O sabotador ou o sabotado?

Sentes que as tuas intervenções não vingaram, porque, entretanto, foste interrompido e te retiraram a palavra, sem dó nem piedade ou és aquele rolo compressor, que atropela e derruba tudo e todos?

Desafio-te a seres a lente transparente e imperturbável, capaz de revelar, sem distorções, o lugar que ocupas nesses contextos.

Ambos sabemos que esses perfis, sabotador e sabotado, existem e são muito comuns.

Que outros perfis reconheces nesses contextos e merecem a tua atenção?

Consegues visualizar, algum ou alguns?

Acreditas que ambos os perfis, sabotador e sabotado, são dominantes nesses enquadramentos?

Como te posicionas em situações, que envolvem dinâmicas de grupo?

A questão é: 
- O teu interesse é contribuir ou sobressair?

O sabotador não é bom, nem mau ouvinte. Ele, simplesmente, não ouve.

O sabotado perde com facilidade a intenção e seus argumentos enfraquecem, por falta de bases de sustentação sólidas.

Há, também, o apressado e sua urgência em despachar e sair. A sua agenda é preenchidíssima e o tempo não é elástico.

O silencioso, praticamente, invisível, algo desinteressado e totalmente alheio. É mais um dos perfis possíveis.

O atrasado, também, ele apressado, especialista em angariar desculpas e memes de enfado.

O criativo, muitas vezes, incompreendido, com uma visão futurista do mundo. Curioso e consumidor de múltiplos universos, cada um com as suas idiossincrasias, ricas em conteúdo e possibilidades.

O divagador que arranca bocejos e distribui cansaço.

O outsider ou inadequado, que nem sabe bem como foi ali parar e o que esperam dele ou, sequer, o que ali está a fazer. Algo ou alguém, sintonizou-o noutra frequência e desarranjou seu circuito neuronal.

O distraído com conversas paralelas, ainda em modo fim de semana, sedento de novidades escandalosas.

O mobilizador, otimista q. b. , com o drive certo, o tom adequado, o timing perfeito, catalizador de atenções, neutralizador das intervenções estéreis, consumidoras de tempo e geradoras de desgaste. Fomentador e Conquistador de bons ambientes.

Os predicados do seu perfil só sobressaem, se houver interesse em contribuir.
As sabotagens interrompem ciclos de crescimento.

Escolha ser o mobilizador. Nunca, o sabotador.
 



segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Plateia faminta

Não entraste sozinha mas também não entraste acompanhada. Contigo, iam os teus pensamentos, inseguranças e tiques, reguladores das tuas emoções em cascata.
Escolheste sentar-te no meio da sala. No epicentro de todos os olhares indiscretos e invasores.
Os espíritos julgadores observavam-te insistentemente, enquanto, criavam conteúdo inútil.
Eu admirei, de longe, a tua coragem e autodomínio.
O vizinho da mesa ao lado quis cruzar olhares, em busca de validação feminina e confirmar que a sua masculinidade continuava ativa e saltitante.
Julgou-te disponível, desesperada, carente e desejosa de ter uma presença masculina do seu lado. 
Um julgamento pobre em argumentos, a combinar com a sua fisicalidade em apuros.
Concentrada no livro ou a tentar não divagar, numa alternância desordenada e conflituosa, só interrompida pela chegada fumegante do prato de lasanha de pacote, obrigaram-te a erguer os olhos e encarar a plateia faminta.
Um circo de distrações que teimaste em rejeitar, até à tão aguardada saída.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

Antipatia Contagiante

Estes dias e após mais um episódio de atendimento inadequado, cada vez mais comum e recorrente, ocorreu-me este pensamento avulso: - A simpatia é ambígua, enquanto que, a antipatia é direta e eficaz, sem margem para ambiguidades. Letal como uma arma branca, que até podia ter tido outro uso, não fosse a intenção do seu portador(a), pérfida e insidiosa, assumir as rédeas da intenção.
A memória de um mau atendimento, de um tratamento ruim, fica gravada instantaneamente na nossa mente e instala-se, tal qual, uma ameba e, cria em nós, o seu habitat ideal. Nalguns casos, pode provocar contágio e usar-nos como um veículo de transmissão, depois de sucessivas desconsiderações abusivas.
Nunca sabemos quando seremos um alvo e quais as motivações que precipitaram essa intenção declarada de maltratar. Colocaram-nos ali, num tempo e espaço, que parece não combinar com a vontade do nosso atendente. Uma condenação injusta e que obriga a posicionarmo-nos, para não questionar o inquestionável.
O que é mais irritante, nisto tudo, é que estamos à mercê das suas intenções, sobretudo, quando precisamos de obter informações úteis, auxílio, segurança, conforto social.
Blindagem emocional e correção de posturas, com recurso a meios adequados e eficazes, como por exemplo, demonstrações de ironia, envernizadas de amabilidade intimidante e bons modos. Desconcertar para anular os efeitos de uma antipatia intencional e altamente contagiosa.
Se bem que, a vontade de reagir descontroladamente é gigante e parece combinar na perfeição com a frase e carga tripeira "bai-te *****"

segunda-feira, 28 de julho de 2025

CAOS VIRAL

Cada vez que consulto as redes sociais, meu estado de ansiedade dispara.
Não sei o que vou encontrar, nem o que o algoritmo preparou para mim.
Circulam imagens difusas, que alternam entre crianças desnutridas, desamparadas, orfãos entregues a si próprios e férias luxuosas em destinos paradisíacos 
Esta alternância entre o caos e o ilusório modifica-nos e, sem nos apercebermos, torna-nos dependentes de artificialidades, com tendência a normalizar estes dois mundos tão antagónicos e diametralmente opostos. 
A realidade atual coloca em destaque, crianças indefesas, desprotegidas, subjugadas às leis e vontades dos adultos, sem perspectiva de futuro, a quem a infância foi arrancada, entregues à maldade humana, amaldiçoadas, votadas ao abandono, sem cuidados, enfermas, escravizadas e impedidas de viver em paz e explorar a sua felicidade livremente.
O pior disto tudo é que não se trata de um pesadelo ou de uma encenação brutalmente dramática.
Esta é a realidade em que vivemos!
Mais valia sermos engolidos por um tsunami e nascermos de novo.
Se eu e, muitos como eu, não aguentam ver as imagens que circulam, de cenários de guerra, morte, desespero humano e buscam limpá-las com purpurina e trivialidades, o que será, viver nessa carnificina.
Pelos vistos, o Hitler e seus desígnios não morreram.
O propósito é o mesmo. Limpeza étnica e conquista territorial, sacrificando nações inteiras, populações inocentes, vingando um poder insaciável e indomável.
A única coisa que mudou desde o holocausto foram os meios de divulgação dessas imagens e sua reprodução no universo digital, com milhões de visualizações, partilhas, likes e comentários. Imagens virais que circulam descontroladamente, nem parecem reais, de tão bárbaras que são, diante de uma assistência apática, ociosa e impotente.
O que se segue depois disto?
O pior e o melhor convivem no mesmo espaço e ganham a dimensão que lhes quisermos dar.
Parece que não há mais salvação para este mundo e, o melhor mesmo, é nascermos de novo e criar alertas automáticos para corrigir desvios de humanidade. 

quarta-feira, 16 de julho de 2025

Verão Propagandista

 Em pleno verão, sinto saudades do inverno, do frio, do agasalho de conforto, do ar gélido no rosto, dos lanches caseiros e demorados, no final de semana, do cinema, da chuva, que nos escusa de compromissos, não obrigatórios e que exigem posturas adequadas, sem revelações inesperadas, moderadas e abafadas. Nessas ocasiões, demito-me, mesmo antes de qualquer convocatória. 
Quem me conhece bem sabe que não vou comparecer nesses contextos comuns e repetitivos. O avançar da idade tornou-me intolerante e intransigente com programas, nada nutritivos, demorados, mentalmente indigestos, demasiado comuns e nada atrativos. 
No verão, não há escapatórias, retiradas airosas. Não há recusas, imprevistos de última hora ou desculpas criativas. Os convites à queima-roupa, apanham-nos desprevenidos e intimam-nos a aceitar, sem reservas. Por mais elásticas que sejam as nossas férias, em ambientes controlados e reservados, longe de aglomerados e programas organizados, elas não são vitalícias. 
Apesar da nossa discrição, chegada silenciosa, não anunciada, não há como escapar a equipas treinadas, no terreno, undercover, aparentemente inofensivas e distraídas. No dia seguinte, soam os alarmes e, lá estás tu, no epicentro de um quotidiano pulsante e delirante. O verão retira-te o sono, ativa a tua impaciência, condiciona as tuas escolhas, expõe as tuas imperfeições, desmoraliza-te diante do espelho, rodeia-te de incómodos e artifícios atordoantes. 
Até parece que tenho repulsa ao verão, mas não. Adoro dias longos, banhos de mar, pele bronzeada, ombros nus, refeições leves, pés descalços, noites longas e ligeiramente animadas.
Só não gosto da pressão entusiasta do verão e dos seus aduladores.

terça-feira, 29 de abril de 2025

Ontem foi dia de apagão

Ontem foi dia de apagão.

O impensável aconteceu e, felizmente, durou menos de um dia.

Um aviso, uma avaria, uma manobra de diversão, uma Putin(ice), um ataque informático, um erro humano, uma traquinice do recém falecido Papa Francisco, o fim do mundo, uma encomenda da Al-Qaeda, a malícia e frieza de um génio informático, a querer dar nas vistas ou um fenómeno, ao estilo dos extra terrestres?

Algo foi e o que quer que tenha sido, provocou um susto épico em muitos de nós.

Tal como os negacionistas, há sempre quem relativize tudo, não se deixe abalar e até ache parvo temer o pior.

Custa-lhes admitir que pensaram, ainda que, fugazmente, na possibilidade de ter sido algo programado para nos atingir.

Assumam que também vêm Netflix.

terça-feira, 15 de abril de 2025

Professora Olga Beatriz

Acabei de descobrir que sofro de claustrofobia. Na verdade, descobri há, aproximadamente, duas horas, assim que me enfiei numa sala de aulas com duas dezenas de pais famintos por notícias das suas crias, mais a diretora de turma.
Estupidamente, perguntei se a distribuição dos lugares era por ordem alfabética. Lembrei da saudosa Professora Olga Beatriz (saudosa para alguns, not for me) e do seu método clássico de nos aterrorizar.
A sua familiaridade com as palavras classe, clássica e classificação não era casual. Palavras, aparentemente, inofensivas mas, uma vez saídas da sua boca, soavam à sirene do quartel do comando distrital dos bombeiros.
As chamadas dorotéias, meninas disciplinadas e devotas do método clássico da Regente Doutora Olga Beatriz, dificultavam a nossa integração e, sobretudo, a nossa vontade de aprender. Emendavam os nossos erros, para acumular pontos na caderneta dos clássicos, que não despem o uniforme, nem aos sábados, domingos e feriados.
As classificações eram um sinal claro e inequívoco de que "escovar" a Professora compensa.
Testei essa habilidade, uma única vez, na sala habitual, com casa cheia e o resultado foi absolutamente desastroso. 
O meu teste falhou!
Naquele dia, o aparelho auditivo da professora caiu e perdeu qualidades. 
Bem quis agradar, ao estilo dorotéia, mas não houve boa recepção.
Passados tantos anos e de regresso à sala de aula, parece que nada mudou. As palpitações, o suor nas mãos, a bexiga cheia, o receio de ser chamado ao quadro das tormentas, reapareceram, para invadir a minha paz.
Adopto a atitude exemplar das dorotéias, de joelhos unidos, músculos comprimidos, olhar fixo e mente, sabe-se lá onde e com quem, ou, troco bilhetinhos com os pais do lado e manifesto minha vontade de bazar?
Depois lembro, que estou ali numa missão pelo meu filho, Leandro de Jesus Valente Aguiar Mota.
   

quinta-feira, 27 de março de 2025

Slugger15

Não sei o que são perdas reais.

Desviei-me da realidade e dos demais.

Fechei-me no quarto dos consumos digitais.

Rodeado de amigos virtuais.

Os afetos deixam-me estranho e desconfortável.

Não sei, se é bom ou mau.

Meu mundo é fechado e controlado por vícios e acessos

Não tenho nome, nem identidade.

Apenas, um nickname

Call me Slugger15.

Só me encontras no chat, cheio de ódio nos dedos e vontade de te tirar o ar.

Nesse espaço sinto-me gigante, poderoso e preparado, para matar todos os meus medos, com nomes próprios e banais.

Estes são os meus domínios. 

Até o meu gato Blinder sabe, onde me encontrar.

Não sinto abandono, apenas tensão ocular.

Minha mãe não sabe das minhas missões, planos e ações.

Morreria se soubesse.

Para ela, eu sou o Sebastião.

Nasci prematuro e glutão.

Esquecido por todos, inclusive, pelo meu irmão, que entretanto encontrou a sua paixão.

Meu pai, só o vejo, dia sim, dia não, de fugida para mais um plantão.

Não me tratem por Sebastião, enfraquece o meu lado campeão. 


Prolongamentos de uma vida comum

Ontem fui a uma sessão, organizada pelas psicólogas, residentes na escola, frequentada pelo meu filho e, em representação, de todo o agrupamento, abordaram o tema: A Saúde Emocional de crianças e jovens.

Para o efeito, convidaram uma enfermeira da unidade de cuidados na comunidade.

A sua exposição sobre de que forma os pais devem contribuir para a saúde emocional dos seus filhos, foi baseada em dados científicos obsoletos e que não refletem a realidade atual. Certamente, fizeram sentido num determinado intervalo temporal, provavelmente, aquele que compreendeu o ano do meu nascimento.

As crianças e os jovens, de hoje, têm acesso a informação diversa, em doses industriais, massivas, vivem numa bolha, carregada de comodismos, cada vez mais, impacientes, agitados, ansiosos e desconectados da realidade.

Eles selecionam o que querem ver e os manipuladores de tendências, percebendo isso, oferecem conteúdo direcionado e nada educativo.

A exigência mental que este tipo de conteúdo oferece é nenhuma, gera habituação e desinteresse por tudo aquilo que implique foco, esforço, trabalho e dedicação.

É composto por passagens de recepção rápida e imediata, entendimento automático, com efeitos nocivos no desenvolvimento psicossocial, sociocultural, intelectual, educacional e mobilidade motora.   

Quando a Senhora Enfermeira convidada, tenta explicar a uma mãe ou pai, consciente, atento, informado, interessado, que é preciso acompanhar, vigiar, sem invadir, orientar, disciplinar, sem autoritarismos, nem permissividades, cuidar e amar, a minha reação é de desconcerto total.

Essa receita, já nós conhecemos e colocamos em prática, diariamente. Porém, não chega.

É preciso muito mais!

Mais intencionalidade, mais interações, mais dinâmicas, outros entendimentos, outras percepções, promover diálogos construtivos, convocá-los a pensar, trabalhar a sua autonomia, desviá-los para aquilo que eles acham não gostar, mas que desconhecem profundamente, inseri-los e integrá-los, através da escuta ativa, livre de julgamentos, entendendo-os, conquistar sua confiança e convidá-los a olhar, ouvir e pensar demoradamente, retirá-los da facilidade, resgatá-los e desviá-los de ambientes comuns e repetitivos, sem benefícios emocionais e mentais permanentes.

Não basta seguir o padrão habitual, ditado por especialistas, ocupados com outras especialidades e, longe, de perceber os “dramas” reais da parentalidade, nos dias de hoje.

Sou totalmente a favor destas iniciativas de âmbito escolar, que convocam a participação dos pais e a sua responsabilização no bem-estar dos seus filhos e sempre que me chamarem, lá estarei.

No entanto, sinto que, estas iniciativas respeitam formalismos, vinculados pelo ministério da educação e estão formatadas, no sentido de alertar, de forma ligeira e pouco explanada, pais e educadores, a intervir na educação dos seus filhos, sem antes, os compreenderem e perceber, os contextos atuais em que eles estão inseridos.  

domingo, 2 de março de 2025

Corrijo e Sigo

Não sou de modinhas

Nem de tendências moderninhas

Não procuro protagonismo

Fujo de eufemismos e de todos os ismos

Minhas expressões não se convertem a seitas, seitans ou grupos de fãs

Prezo a liberdade de pensamento, sem mordaças ou carraças, a perseguir meu entendimento 

Meus erros são autorais, denunciam meu estado transitório, distante dos tais e quais.

Não me lamento, nem me contento

Corrijo e sigo

É o bom que a Vida tem, na certeza de que não somos ninguém, sem a vontade de alguém.


sexta-feira, 21 de fevereiro de 2025

Tropeços

Saí de noite para fumar.

 Não tive cara para regressar.

 A noite estava fria e eu não, entendia, porque, receava voltar.

Era tudo tão imperfeito, para eu pensar em regressar.

Segui a passo, no meio da neblina.

Contrariei a minha sina.

Tropecei, muitas vezes, na densa neblina.

Esfolei a alma de sentimentos ruins e segui, sempre, em frente, em busca de mudar.

Libertei-me do cigarro e de quem não me quis acompanhar.

Um cenário comum e dominante, difícil de esquecer e apagar. 

Agora, muito distante e para o qual prometo não regressar.

A vida não me quis poupar.

Ensinou-me a viver, aos bocados, na felicidade, que não se detém mas vai e vem.



quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

Um Mundo Novo

 A "sorte protege os audazes" ou "A sorte protege os capazes que ousam"?

De que tipo de capacidade estamos a falar?

Capacidade para fazer o que está certo e comprometer, sem destruir, nem apoderar, ou, servir, exclusivamente, fins próprios.

É dessa capacidade que estamos a falar ou há, outra, que nos está a escapar?

A capacidade de contagiar o grupo, as organizações, a comunidade, o meio envolvente, com efeitos propagativos e coletivos.

O que me parece, baseado numa percepção pessoal, demasiado recorrente, é que a capacidade explorada e desenvolvida é tudo menos generosa, altruísta, agregadora, galvanizadora do bem comum, mobilizadora e transformadora.

O seu propósito é fútil e ganancioso, desprovido de princípios, ética, valores e limites.

Ultimamente, tenho assistido ao esmagamento da integridade, da honestidade, das liberdades individuais, da responsabilidade social, da lealdade, do compromisso e da honra. 

Os esforços, o trabalho, o empenho, a melhoria contínua, a entrega, os sacrifícios, trazem mais problemas do que ganhos. As atitudes vingadoras compensatórias são amorais. Cercadas de poder, cobiça, ambição desmedida, status, fama, visibilidade oca, passeiam o seu charme caro, mas pobre em autenticidade e conteúdo.

A aparência é a cabeça de cartaz, a protagonista, a angariadora de todas as atenções e recompensas.

O sentimento de injustiça é tão demolidor e a mensagem sobre ganhar vantagem e seus fiéis seguidores é tão declarada, que parece convidar a desistir e procurar isolamento nas ilhas Faroé.

segunda-feira, 13 de janeiro de 2025

APARIÇÃO NATALÍCIA

 Há sonetos e sonetos!

Assim entendia a direção do liceu feminino, Vargas Melo, frequentado por Amália.

O soneto que Amália ousou ler, longe dos olhares espelhados e atentos, das vigilantes da biblioteca, era um desses. Um incendiário moral, nada educativo. 

Apesar de todas as contrariedades, continuou, mas o embaraço fê-la corar abundantemente e dar por terminada a leitura, para não atrair atenções incriminatórias e ser chamada à sala da reitoria. 

As cócegas na garganta, provocadas pelo pó esvoaçante, descarnado, das lombadas do livro abafado e proibido, fizeram-na tossir descontroladamente e acordar os espíritos de um passado quinhentista. O primeiro a acordar e mais afoito de todos, foi Luís Vaz de Camões.

Apercebendo-se do interesse pelo seu soneto de amor, Camões, decide ressuscitar numa nuvem etérea, envolta num pó cinza e dirigir algumas palavras clássicas, à sua cândida leitora.

- Vejo que a menina se enfeitiçou pela minha poesia lírica, o que muito me apraz.

Amália congelou de medo, medo esse, que fez paralisar os seus movimentos e deixá-la muda. Os efeitos do congelamento ainda duraram uns eternos segundos, até regressar ilesa, ao seu estado normal e conseguir formular uma resposta adequada.

- Na verdade, eu nem deveria estar aqui, a ler às escondidas e corar de desejo. Desejo de sentir o amor e tudo aquilo que diz provocar. Neste momento, sinto-me impura!

A sua elevada inteligência e sensibilidade compreenderam os pensamentos de uma menina, em breve, mulher, perseguida por julgamentos sociais.

Sabia que, teria de usar o tom certo para a manter interessada e evitar que renunciasse a algo que desconhece, mas arde em saber.

- Menina Amália, o amor é tudo menos impuro. Ele é mantimento! – acrescentou o poeta, na esperança de não a perder para o isolamento.

- Como assim, mantimento? – retorquiu, Amália.

Uma vez conquistada a sua atenção, Camões prosseguiu e respondeu a todas as inquietações da sua pupila da atualidade, elevando o amor a todos os seus expoentes.

Entretanto, o intervalo de almoço termina e soa o toque, para retomar as aulas da tarde. Cada um, sumiu para seu lado e nem houve tempo para despedidas épicas.

O tempo voou veloz, pelo menos para Amália, agora mãe, de uma menina chamada Benedita, aluna no mesmo liceu, outrora, exclusivamente feminino.

Benedita está crescida e cheia de vontade de contrariar a autoridade. Pais e professores são os mais visados.

- Acho que, está na hora de chamar o meu bom e velho amigo Camões, para me ajudar a entender que mundo é este, que abre um fosso geracional entre velhas e novas mentalidades – pensou Amália, baixinho.

No tempo de Amália, o amor era recatado, a autoridade não era questionada, as ousadias pagavam-se caro, o trabalho era uma prioridade, os artistas não eram livres, a cultura era comandada pela censura, a justiça obedecia a um estado repressor, não havia liberdade de expressão. Entretanto, muita coisa mudou.

Desta vez, Camões apareceu suavemente e sem sobressalto.

-  Apraz-me saber que exploraste o Amor de que falo no meu soneto – disse Camões, interrompendo o silêncio, sorridente.

- Que bom ver-te! – exclamou Amália, entusiasmadamente.

Felizmente, Benedita tinha saído mais cedo e sobrava tempo para falarem a sós, sobre todas essas mudanças, que foram ocorrendo e desarranjaram as relações interpessoais.

- Amália sinto-te preocupada com a Benedita e suas atitudes afrontosas.

- Entre nós há cinco séculos de distância e uma longa história de destruições e reconstruções. Vejo que aboliram as fronteiras, mas não acabaram com as batalhas territoriais sangrentas – prosseguiu.

- Os ganhos na conquista de uma maior e mais diversa liberdade de expressão, precipitaram o crescimento desenfreado de meios de comunicação alternativos, que ameaçam acabar com a verdade e criar um universo de mentiras escandalosas e perniciosas – acrescentou Camões, do alto da sua sabedoria secular.

Amália permanecia calada e pensativa. Afinal, ela sabia que havia motivos para se sentir apreensiva com Benedita, seu futuro e o estado do mundo.

- Porém, tem havido manifestações culturais e artísticas sublimes, que vos distraem de tudo isso e apesar de não bastarem para mudar o estado das coisas, têm o poder de mudar a forma como olhais para a vida, o mundo e representam chamadas de atenção, alertas, para os espíritos mais sensíveis, como os da Benedita, capazes de construir um mundo melhor – prosseguiu Luís Vaz de Camões.

Continua, continua. Estou a gostar de ouvi-lo – pensou ela.

Nesta época natalícia as aparições camonianas são muito comuns na família Vasconcelos. A proximidade de um novo ano, as reuniões familiares atrapalhadas, o balanço dos acontecimentos individuais, os arranjos e desarranjos natalícios, convocam a presença de uma figura história ilustre, do passado artístico português, experiente em missões difíceis.

- Há quinhentos anos que eu sou o recurso de todos os vossos natais – constatou o poeta e dramaturgo português.

- Sou uma espécie de pai natal exclusivo, zarolho, com veia poética e uma visão modernista, a quem todos recorrem, quando algo os incomoda.

Amália anuía com a cabeça, em concordância.

- O Amor é mantimento, minha cara Amália. Não se esqueça disso! – avançou Camões.

Esta era a frase que finalizava todas as suas conversas. Indicava a hora de regressar ao seu passado renascentista.

Mais uma vez, não houve despedidas. O que houve foi uma mudança de cenário, com a entrada apressada de Benedita.

- Mãe, Mãe, tu não vais acreditar o que acabou de acontecer – disse Benedita agitada.

- Cruzei-me com um homem vestido de Camões e senti uma energia boa, que me fez virar. Nesse instante, ele fixa o olhar em mim e diz-me que, o Amor é mantimento!

- Achei bizarro! – exclamou Benedita.  

Amália esboçou um sorriso cúmplice e rematou – Ele disse-me o mesmo!

Incrédula, Benedita, sacudiu a cabeça e questionou a mãe – Como assim?

Por momentos, Amália quis descair-se e relatar as visitas sucessivas, feitas pelo mestre da poesia, desde o tempo da sua mocidade. Conscientemente, travou a tempo. Benedita não iria compreender e só iria remexer ainda mais a sua vida de adolescente inconformada.

- Estou a brincar! Se bem que, essa réplica ambulante de Camões, não disse nenhuma mentira. O Amor é mantimento, é a seiva que nos faz viver melhor. Após este momento reflexivo de Amália, fez-se silêncio e desenhou-se o mote para criar sonetos novos, tendo o amor como protagonista. Um desejo acalentado por Amália para este Natal.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Uvas passas, desejos mirrados

As palavras custam a sair. Acho até que, regelaram e sucumbiram ao frio, dos primeiros dias de janeiro.
O arranque do ano nunca foi fácil e são necessários esforços extraordinários, para sair do estado letárgico, resultante do fecho do ano.
Só de pensar, na repetição dos dias, os mesmos cenários, os conflitos de sempre, frases batidas, mau humor matinal e, nalguns casos, visceral, ressentimentos e um copo cheio de dedadas familiares, que nos deixam ébrios, de uma militância sem progresso, fico doente.  
As doze uvas mirradas, uma por cada desejo manifestado, mas nunca atendido, não impedem esta preguiça dominante de se fixar. É sorrateira como a gata da vizinha e seu pêlo de veludo branco, garimpeiro de reações alérgicas, nos organismos mais expostos. A tentação é sacudi-la, como quem sacode a caspa das ombreiras dos casacos. Apesar das inúmeras tentativas, ela não sai, nem esvoaça para longe. Cola-se à vontade que, não passa de uma boa intenção. Às tantas e sem dares por isso, estás a entoar o mantra da procrastinação.
Acredito que, tal como os bagos de uvas, somos prensados, os sucos são extraídos e reina a confiança que, esta será a melhor colheita do ano. Basicamente, és forçado a abandonar a tua identidade de vinho de mesa corrente e adotar a identidade de um vinho DOP. 
Agora entendo porque tem havido um excesso de fraudes. Todos querem ter o selo de vinho DOP, por estarem fartos de viver na vitrine dos vinhos, com sabor a vinagre.
Os seus sucos são insuficientes, para produzir um vinho de excelência e dispensam quaisquer processos de decantação. Na verdade, desperdiçou-se um bom cacho de uvas que, muito provavelmente, ganharia destaque numa fruteira, em ouro foscado, que serviria de modelo a um pintor realista e apreciador da natureza morta e sua força simbólica.
Nem sempre o lugar onde nos encontramos, permite evidenciar quem somos e expor aquilo que temos de melhor e exulta nossas qualidades e capacidades.

Acordei o mundo

Najla tinha muita dificuldade em dormir. No seu entender, a vida podia acabar se se deixasse adormecer. Uma convicção implantada, desde a m...